Mulheres Negras e o HIV/Aids - reflexões sobre a prevenção e o cuidado.

  • Author
  • Claudia Fonseca Santamarina
  • Abstract
  • O estigma que marca mulheres, que desejam e dispõem do seu corpo ao seu bel prazer, antecede o estigma de viver com HIV. Ao lado do heterocissexismo, o racismo duplica o estigma impetrado às mulheres negras, sejam cis ou trans/travestis,  que historicamente as objetifica como mulheres para transar ou para servir -  confluência que precisa ser melhor explorada pela produção acadêmica, visto tratarem-se de dois sistemas de manutenção de poder. 

    Ao lado do racismo e do heterocissexismo, a necessária demonização do HIV – entendida muitas vezes como maldição – depende da associação com a imensa transgressão da mulher que é querer ter prazer, seja ela cis ou trans/travesti. Não por coincidência coloca-se trabalhadoras do sexo como população chave, excluindo da atenção ao risco da infecção todas as mulheres que não se declararem prostitutas. No entanto, os indicadores epidemiológicos, disponibilizados pelo governo brasileiro, em 2023, atestam que mulheres cisgênero negras são as que mais têm se infectado pelo HIV, independentemente de serem ou não trabalhadoras do sexo, e as que mais morrem, se comparadas com todas as outras populações chave. Não há informações oficiais sobre a morbimortalidade de mulheres trans/travestis. A “mulher-família” cis infectada não prostituta, mesmo que tarde a ter seu diagnóstico, denuncia com sua soropositividade a perversidade sexista, que suprime a autonomia sexual das esposas-mães-mulheres-recatadas-do-lar, que as ameaça de morte social caso seu diagnóstico seja revelado.

    Sim, o estigma e discriminação vividos por mulheres cisgênero tem suas especificidades e a punição social pelo pecado de se deixar infectar não sendo prostituta é severa e precisa ser vivida em silêncio. Sim, o estigma e discriminação vividos por mulheres cisgênero prostitutas tem suas especificidades e a punição pelo pecado de se deixar infectar e oferecer riscos aos seus clientes também é severa, mas pode e deve ser visibilizada para servir de exemplo da maldição de gozar de seu corpo como serviço/mercadoria obtendo para si parte dos lucros. Sim, o estigma e discriminação vividos por mulheres transgênero e travestis tem suas especificidades e a punição pelo pecado de existir e se deixar infectar, oferecendo riscos aos seus parceires, precisa ser tratada pela via necropolítica - políticas de morte que reforçam estereótipos, segregações e exclusões de toda ordem até o extermínio – eis a falta de informação oficial. Mesmo que entre as mulheres cisgênero, a principal categoria de exposição ao HIV – mais de 80% dos casos – seja a heterossexual, enquanto entre homens cisgênero, é a bissexual (65,1%), o governo brasileiro nos informa, em 2023, que, desde 2012, os casos de Aids são mais prevalentes em mulheres cis negras (60,7%), ainda que seja possível indicadores mais alarmantes de prevalência entre mulheres trans e travestis negras.

    O que se fala e se faz nos serviços em relação à prevenção do HIV/Aids entre mulheres cis e trans/travestis negras? O que se fala e se faz em relação ao cuidado integral em saúde de mulheres cis e trans/travestis negras? 

    Além da evidente base para a produção de subjetividades apropriadas ao jogo cafetinístico do capitalismo, a feminilidade negra cis e trans/travesti têm sido inventada e retroalimentada no jogo de opostos – dominadas e dominantes, subalternizadas e subalternizadores, invisibilizadas e omissores, jogo este que não aparece imediatamente como estigmatizador, mas que marca e sustenta a supressão de informações e tecnologias de prevenção destinadas especificamente às pessoas que não sejam valoradas como “ativas” - leia-se homens cisgênero. O alvo de todo empenho é o "ativo”, “transmissor”. Não é acaso que não haja uma franca, abundante e visível distribuição pública de preservativos internos (“femininos”) no SUS, que podem ser utilizados em relações passivas (vaginais ou anais). É possível aventar várias respostas para a indisponibilidade de preservativos para mulheres, menos a de que mulheres não praticam sexo em posição passiva - anal e vaginal, afinal, para cada penetrador que usa um preservativo externo ("masculino") há uma ou um penetrado de forma anal ou vaginal.

    O preservativo externo (“masculino”) mantém o poder de decisão dos ativos sobre a troca de fluidos. É isto o que se tem feito em relação à prevenção do HIV para mulheres negras cis ou trans/travestis, incluindo as redesignadas – ausência de preservativos internos, ausência de campanhas de testagem, ausência de análise de riscos, ausência de Profilaxia Pós-Exposição (PEP) e Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), ausência de escuta ativa. Não por acaso as categorias de exposição sexual continuam sendo nomeadas em função da orientação e identidade sexual e, não, em razão das práticas sexuais. Perguntar se a pessoa teve ou costuma ter uma relação anal ou vaginal desprotegida para mulheres cis ou trans/travestis e pessoas não-binariás seria muito mais eficaz e orientador em termos de percepção de risco do que fingir que mulheres cis e pessoas não-binárias não tem relações anais ou que mulheres trans e travestis tem sempre acesso aos preservativos, PEP e PrEP. O corpo e seus genitais continuam sendo reapresentados como instrumentos de poder e, não, como meios de prazer. 

    Diante das reiteradas subjetividades “mulheres-família” sendo produzidas ou buscadas em si, como pensar em práticas sexuais arriscadas? Como pensar que “mulheres-família” usem drogas e compartilhem materiais perfurocortantes? Vulnerabilidade, só se elas se relacionarem com homens transgressores - sexualmente imorais ou usuários de drogas? 

    A saúde integral de mulheres negras vivendo ou não com HIV/Aids depende de escuta e isso não quer dizer patologizar nada ou transformar a psicoterapia em regra, quer dizer que mulheres negras precisam lidar com o racismo desde tenra infância, o que as oprime gigantescamente, também precisam enfrentar o estigma de serem mulheres – mulheres cis ou trans – ou com o de sustentarem seu gênero dissidente – homens trans e pessoas não-bináries – e que ainda tem que se haver com o estigma de viver com HIV. Essa é uma pressão diuturna que gera relações mortificantes. 

    A macropolítica que se sustenta no inconsciente colonial-capitalístico racista e heterocisssexista vulnerabiliza e se capilariza em micropolíticas repetidas nos serviços de saúde do SUS. É preciso que mulheres cis e trans/travestis se descolonizem desse modelo para não ceder à vontade de política das formas conservadoras de existência, para autogovernarem-se. Mulheres negras cisgênero e transgênero/travestis, assim como pessoas não-binárias, precisam de espaços dialógicos que cooperem para insurgência micropolítica, com ressonâncias entre suas emoções vitais e revelando suas vulnerabilidades e potencialidades. Problematizar vulnerabilidades que levam ao maior adoecimento e mortalidade de mulheres negras cis e trans/travestis por HIV/Aids é escutar e falar da falta, da fragilidade advinda do desrespeito sistemático vivido em âmbito social, programático e individual. Sobre nenhuma dessas vulnerabilidades - que se apresentam, via de regra, simultaneamente -, há controle ou medida eficaz de superação permanente. Ao identificar as “vulnerabilidades” individuais e sociais de cada usuárie diante das “vulnerabilidades” programáticas, é necessário falar de processos vulnerabilizadores  imbricados de interseccionalidades. Refletir sobre o quanto a macropolítica impregnada de racismo e cissexismo incide nas micropolíticas e do quanto as micropolíticas cotidianas, mesmo atravessadas pelas macropolíticas empobrecedoras e estagnadoras, podem produzir fissuras, rupturas, jeitos diferentes de fazer e se haver com os processos que vulnerabilizam para produzir em si fluxos de saúde, de vida. Jeitos de fazer diferente acontecem todos os dias, entre profissionais de saúde e usuáries do SUS, o que permite que serviços possam se transformar em territórios relacionais que sejam provedores de acolhimentos recíprocos e promotores de saúde integral. 

  • Keywords
  • Mulheres; HIV/Aids; Cisgeneridade; Transgeneridade; Interseccionalidades
  • Subject Area
  • EIXO 6 – Direito à Saúde e Relações Étnico-Raciais, de Classe, Gênero e Sexualidade
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