A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) foi instituída pela Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011, com a proposta de organizar os serviços de saúde mental no Brasil. Esta política prevê a assistência pautada na pluralidade dos indivíduos, a atender todas as demandas em saúde mental, em seus diversos níveis de complexidade, visando a integralidade do cuidado. Dentre os recursos da rede destacam-se as unidades de saúde mental em Hospitais Gerais.
Embora não constituam a base da assistência, essas unidades de saúde mental em Hospitais Gerais desempenham um importante papel quando os serviços extra-hospitalares não são suficientes. Neste contexto, torna-se oportuno discutir sobre a necessidade de alteração da lógica manicomial que tende a se reproduzir nesses espaços. Desta forma, o objetivo deste trabalho é relatar a experiência de acadêmicas de enfermagem acerca do cuidado realizado em uma unidade de saúde mental.
Trata-se de um estudo descritivo do tipo relato de experiência de abordagem qualitativa. A experiência foi vivenciada por duas discentes do sexto semestre de graduação em Enfermagem, da Universidade Federal do Pampa, nos meses de novembro a dezembro de 2023. As atividades ocorreram durante a realização das práticas propostas no componente curricular de Gestão do Cuidado II, que tem dentre os seus objetivos, a compreensão da gestão do cuidado à pessoa em internação psiquiátrica.
A unidade de internação em saúde mental onde ocorreram as práticas conta com 12 leitos ao total, sendo cinco femininos e cinco masculinos, pelo SUS. Os outros dois leitos constam como privados, sendo um feminino e o outro masculino. Além disso, possui uma sala reservada para procedimentos, três salas para uso dos profissionais, um banheiro de uso comum da equipe e conta também com uma área externa dedicada para a realização de oficinas terapêuticas. Quanto aos profissionais, há três enfermeiros, 12 técnicos de enfermagem, um médico psiquiatra e um clínico geral, uma assistente social, uma psicóloga e uma pedagoga.
Dado isso, a partir das experiências vivenciadas em prática, foram observados determinadas condutas entre os profissionais que fogem dos princípios da RAPS. Destaca-se aqui, algumas situações onde observou-se lacunas na atenção humanizada e centrada nas necessidades dos usuários internados, manifestada pelo estabelecimento de disputas de poder e relações de superioridade por parte dos profissionais.
Neste contexto, pôde-se evidenciar a inflexibilidade presente no serviço, onde os profissionais seguem rigidamente rotinas e protocolos, muitas vezes desconsiderando a fala e desejos dos usuários. Tais condutas, levam à uma relação verticalizada, cabendo ao usuário submeter-se às ordens que lhe são impostas, reproduzindo assim, ideias e práticas manicomiais. No entanto, para o cuidar humanizado, entende-se que é necessário também saber agir diante do imprevisto, possibilitar escolhas e estabelecer negociações.
Posto isso, o movimento antimanicomial surge com o ideal de que não há cuidado sem liberdade, com o objetivo de proporcionar maior autonomia para os indivíduos, entretanto, os profissionais ao possuírem um conceito enrijecido e desatualizado sobre a sua forma de atuar diante das necessidades dos usuários, propagam um comportamento que vai contra o movimento, refletindo também, na interação entre a equipe.
Logo, esta relação vertical não restringe-se apenas entre profissionais e usuários, mas também está presente na equipe, onde observou-se uma lógica médico-centrada bastante presente, apesar da existência de uma equipe multiprofissional, ainda há relações de poder entre os trabalhadores que acabam refletindo na assistência ofertada aos usuários.
Ademais, foi possível observar, a ausência de um Projeto Terapêutico Singular (PTS) que norteasse o cuidado em saúde mental dentro da unidade. O PTS é um instrumento capaz de subsidiar a construção de intervenções que visam considerar as situações de vulnerabilidades enfrentadas pelos usuários. Ele se constitui como um facilitador das ações em saúde estimulando a autonomia e corresponsabilização entre usuário, família e equipe.
Além de auxiliar o usuário durante o período da internação, o PTS possibilita a continuidade do cuidado nos demais níveis de atenção, logo o usuário permanece na Rede de Atenção Psicossocial, garantindo-se assim, uma assistência longitudinal após a alta hospitalar.
Visando superar os desafios observados durante as atividades práticas na unidade, foram desenvolvidas pelas acadêmicas abordagens que buscam proporcionar aos usuários uma melhora em sua experiência durante o período de internação, através do uso de tecnologias leves como o acolhimento e a escuta ativa.
A priori, a prática do diálogo e da escuta causou estranhamento por parte dos usuários, fazendo-nos perceber isso como uma novidade no ambiente. A relação horizontal, conquistada através do acolhimento, permite o fortalecimento de um vínculo que é importante para o percurso do tratamento, pois as questões de saúde mental não devem estar atreladas apenas à medicação. Deve-se olhar para o indivíduo de uma forma integral, onde ele possa ouvir e ser ouvido a fim de ter maior autonomia e confiança em si e na equipe.
Para a eficácia do cuidado humanizado é necessário compreender a autonomia como algo que se constrói em conjunto. Possuir a capacidade de lidar com as interações sociais e dependências de um indivíduo possibilita a ele essa construção, rompendo com os ideais manicomiais que rotulavam o usuário como objeto de violência e censura. Neste contexto, acredita-se que a maneira como o indivíduo é tratado influencia diretamente em sua capacidade de expressar-se livremente e exercitar sua autonomia, ressaltando a importância de reconhecer e considerar as particularidades de cada usuário.
Diante do exposto, a fim de promover essa autonomia para os usuários foram desenvolvidas algumas formas de reconhecimento visual da medicação para aqueles que possuíam dificuldade na compreensão, permitindo-nos observar a importância de uma prática humanizada e sensível capaz de permitir-lhes a manutenção de sua independência.
Além disso, para superar a fragmentação do cuidado e garantir que cada indivíduo receba uma assistência contínua e abrangente, foi destacado durante os momentos de diálogo a importância de manter o acompanhamento após a alta hospitalar, em diferentes serviços de saúde, como o Centro de Apoio Psicossocial (CAPS) e as Estratégias Saúde da Família (ESFs), para que houvesse uma melhor adesão do tratamento e redução dos índices de reinternações psiquiátricas.
Portanto, no decorrer das atividades realizadas na unidade, ficou evidente a importância do uso de práticas de cuidado que promovam a autonomia do usuário, através do exercício da cidadania, respeito às singularidades e às especificidades, além do preparo profissional e da articulação entre os serviços. Através das experiências aqui relatadas,foi possível reconhecer a importância do uso de tecnologias leves, como a escuta ativa e o acolhimento.
Ademais, destaca-se a relevância dos acadêmicos de enfermagem em espaços como esse, uma vez que, a presença e o olhar dos discentes podem influenciar positivamente no cuidado ofertado e promover a desconstrução de práticas manicomiais reproduzidas em unidades de saúde mental.