Apresentação: As desigualdades em saúde são multifacetadas e determinadas por sistemas de poder que se interseccionam. As diferenças no cuidado em saúde se apresentam em um limiar contraditório entre ausência e presença. O cuidar coletivo, entre grupos sociais marcados por determinadas identidades, revela uma potencialidade da promoção de novas formas de pensar o cuidado na saúde pública. À maneira que revela as produções e reproduções de desigualdades em saúde construídas nas relações sociais cotidianas. Em oposição, a organização institucional do cuidado, através da política de saúde, revela e reproduz as dinâmicas das desigualdades raciais, sociais e de gênero. A política e o discurso das identidades trouxeram para a arena pública reivindicações dos sujeitos sociais que foram oprimidas durante os anos por diversos processos de violência sistemática. No Brasil, a interpretação da formação social e histórica brasileira evidencia a construção do país marcado pelo patriarcalismo, racismo, classismo e as relações de colonialidade; vínculos que se reproduzem e se reatualizam em práticas de poder desiguais. A interseccionalidade como ferramenta analítica, teórico-prática, empregada à intervenção e estudos da saúde promove um refletir crítico-político, com vistas à promoção de estratégias que possuem o horizonte da justiça social.
Desenvolvimento: Os estudos contemporâneos na área das ciências sociais e humanas tem envidado esforços à intepretação interseccional dos fenômenos sociais. Na área da saúde o debate tem sido qualificado contemporaneamente sobretudo por pesquisadores da área da saúde coletiva. A narrativa busca apresentar o panorama dos estudos intersecionais na área da saúde, tendo como ponto de partida os resultados da Dissertação de Mestrado do autor, no qual a revisão de escopo foi o procedimento metodológico adotado para a interpretação da literatura acadêmica. A análise foi realizada nas bases de periódicos: Scielo Brasil e Portal de Periódico da CAPES, considerando os anos entre 1990 até 2022. Ao final, do universo geral, empregado os critérios de inclusão e exclusão, 29 artigos foram analisados. Para tal, construímos ficha de pesquisa com perguntas orientadas para a extração dos dados necessários, com fins à responder o pressuposto. Além disso, o aprofundamento dos estudos sobre identidades e interseccionalidade balizou o trabalho, mediando a relação com os estudos sobre saúde coletiva. Buscamos nessa comunicação interpelar os resultados, traduzidos enquanto a síntese de um processo teórico-prático mais amplo, reforçando a implicação dos sistemas de poder no processo saúde-doença e as experiências ao enfrentamento das desigualdades sociais em saúde.
Resultados: As lentes interseccionais à análise da política de saúde partem de diversos mirantes de inquietações e interpelam diferentes marcadores sociais da diferença, entretanto identificamos que o eixo agregador ainda é tido nas dimensões entre classe, raça e gênero. Os fenômenos em saúde estudados extrapolam o setor saúde, ao passo que, dialogam com ele, uma vez que a saúde é um processo social. Os ensaios se iniciam mediante um resgate, fundamental, à apreensão da formação social e histórico brasileira, mediando e costurando os pontos de encontro que evidenciam as relações entre as desigualdades contemporâneas e a sua produção no espaço-tempo. É notória a relação em todos os estudos, contextualizando e problematizando a desigualdade a partir da sua construção social, desnaturalizando o fenômeno. A perspectiva decolonial é largamente acionada para as análises, buscando identificar as relações vistas a partir da realidade regional e nacional. Os estudos na área, relacionados a interseccionalidade e saúde, se ampliam após 2019, no período da pandemia da Covid-19, mas ainda de maneira tímida perante a produção nacional. Interpretamos esse processo como sintomático, mormente devido a ampliação das desigualdades sociais, raciais e de gênero evidenciadas no acesso, permanência e produção social da saúde no período pandêmico e em contiguidade. É significativo nas produções a relação entre o neoliberalismo e o aprofundamento das desigualdades, residindo uma avaliação negativa ao modo como as políticas são implementadas neste tempo histórico, ainda que uma crítica obstinada ao modo de produção capitalista não ganhe centralidade em grande parte dos textos. O debate apresentado nos periódicos científicos tem maior proeminência dos pesquisadores vinculados a instituições do eixo sudeste – buscamos analisar e identificar a inserção institucional, territorial, racial e de gênero, contudo a única que gerou resultados adequado foi a institucional – o que por si só já evidencia a relação de desigualdade socioterritorial existente no país. Contraditoriamente, observamos as mesmas relações de desigualdades estudadas se expressando na forma como se posiciona a literatura acadêmica interpretada, retoricamente. A literatura sobre interseccionalidade posiciona a mobilização social enquanto uma dimensão essencial da ferramenta interseccional, e verificamos que os trabalhos apresentaram a intrínseca relação entre promoção da justiça social e movimentos sociais, reposicionando, novamente, o surgimento da ferramenta interseccional no bojo de movimentos sociais críticos as relações de poder, sobretudo das mulheres negras.
Considerações finais: Os paradigmas essencialistas, que cristalizam determinada identidade e imagem às representações dos sujeitos sociais, são tencionados criticamente pelos sujeitos sociais em múltiplos espaços de articulação coletiva na área da saúde. Os movimentos por direitos, que tem em sua agenda a promoção da justiça social, e que reivindicam identidades sociais, traduzem a potencialidade de uma interpretação mais adequada e qualificada das relações de poder que causam desigualdades. Os estudos revelaram a importância que a interseccionalidade enquanto ferramenta analítica vem auferindo na contemporaneidade às interpretações sobre o processo saúde-doença, sobretudo no contexto da política de saúde brasileira, já que desde a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS) esforços são diligenciados à diminuição das desigualdades em saúde. As políticas públicas, com ênfase às políticas sociais, têm se aproximado da interseccionalidade para promover projetos e políticas que atuem no sentido de minorar as desigualdades e afinar as lentes para o cruzamento de relações de poder que produzem e reproduzem as diferentes formas de opressão. O desafio para a política de saúde é deslocar para o cerne das intervenções o olhar interseccional que conecte os diferentes marcadores sociais da diferença na atuação dos profissionais de saúde, articulados a teoria e a prática. Em síntese, os estudos admitem a interseccionalidade como uma ferramenta analítica, teórico-prática, essencial para a interpretação e intervenção, dialogando com as experiências reais construídas nas políticas, serviços e projeto, no processo saúde-doença, fomentando processos que promovam a justiça social e a diminuição das desigualdades em saúde.