Os territórios interestaduais se caracterizam por significativa complexidade para organização de serviços regionalizados e na perspectiva de Redes de Atenção à Saúde. Trata-se de regiões com grande extensão territorial e que agregarem a interdependência entre a União, dois ou mais estados e diversos municípios limítrofes. Este resumo apresenta a análise de constrangimentos para implantação da primeira experiência de Rede Interestadual de Saúde (RIS) no Brasil. Trata-se de um estudo de análise política, com nível analítico centrado na RIS e que adotou elementos teórico-conceituais do Triângulo de Governo e da Teoria da Produção Social de Carlos Matus. O estudo foi realizado em RIS do Nordeste brasileiro, constituída por 53 municípios, dois estados e a União. Refere-se à fronteira interestadual entre as macrorregiões Norte da Bahia e do Vale do São Francisco, em Pernambuco, sendo 28 municípios baianos e 25 pernambucanos. Cada macrorregião contava com três regiões de saúde com Comissão Intergestora implantada, suas sedes eram os municípios de Juazeiro-BA e Petrolina-PE. A população regional aproximada era de dois milhões de habitantes, distribuída em extensão territorial de 127.887,91 km². O território da pesquisa sediou a primeira experiência de projeto de rede interestadual de saúde, com envolvimento da União; com Central de Regulação Interestadual de Leitos (CRIL), gerida por dois estados; e com uma Comissão de Cogestão Interestadual de Saúde, com proposta de gestão tripartite. O projeto político da rede interestadual possuía quatro diretrizes com seus eixos de ação: a) fortalecimento da atenção básica, b) redução da mortalidade materno-infantil, c) atenção às urgências e emergências e d) regulação integrada. A produção dos dados combinou a análise documental, entrevistas com informantes-chave e o diário de campo do pesquisador. Para este resumo, apresenta-se os resultados e a análise da categoria “governabilidade”, aqui definida como “principais aspectos político-econômico-gerenciais que representaram obstáculos para implantação do projeto idealizado como Rede Interestadual de Saúde”. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa de Universidade Federal da Bahia (CAAE 74178617.4.0000.5030). A implantação de serviços de saúde prevista no desenho político regional não ocorreu de forma homogênea entre as microrregiões de saúde da fronteira interestadual e boa parte dos serviços implantados se concentrou nas sedes regionais (Juazeiro-Ba e Petrolina-Pe), sendo que nas microrregiões de Paulo Afonso-Ba e Senhor do Bonfim-Ba houve descredenciamento de serviços pela gestão estadual, gerando um importante desequilíbrio de acesso a serviços entre os dois estados fronteiriços e a alta demanda por atendimentos nas sedes da região interestadual, por serem os municípios com os sistemas de saúde mais estruturados. Os relatórios de cobertura da APS permitiram identificar que os municípios da RIS ampliaram de forma heterogênea as Equipes de Saúde da Família e aqueles pertencentes à macrorregião de Pernambuco tiveram maior ampliação, onde quase todos alcançaram 100% de cobertura em comparação com o Norte da Bahia. Em ambas as macrorregiões dos estados ocorreu a implantação de um número superior ao previsto de Núcleos Ampliados de Saúde da Família entre 2009 e 2018. Referente à redução da mortalidade materno-infantil, identificou-se que a RIS possuía apenas uma referência para atenção perinatal de alto risco, com insuficiência de leitos de UTI neonatal e pediátrico, além da pouca resolutividade e oferta de atendimentos para partos de risco habitual, em hospitais regionais dos municípios de pequeno porte. Na atenção às urgências e emergências, as metas de ampliação de Serviço Móvel de Urgência, de Unidades de Pronto Atendimento e Equipes Multiprofissionais de Atenção Domiciliar tiveram maior êxito na macrorregião Norte da Bahia, onde os serviços foram regionalizados, enquanto na macrorregião de Pernambuco se manteve uma situação inalterada e com os serviços concentrados na sede (Petrolina-Pe). Embora nas atas da CIR Petrolina fosse evidenciado que havia propostas de regionalização do SAMU, Unidades de Suporte Avançado, de Pronto Atendimento, ‘motolâncias’ e ‘ambulanchas’, nada se concretizou por entrave financeiro e pela não adesão de dois municípios da fronteira, ao Pacto pela Saúde. A adesão ao Pacto era critério de habilitação de serviços de urgência e emergência nas Portarias federais. Por outro lado, a ampliação dos leitos de retaguarda e salas de estabilização alcançaram melhor êxito em Pernambuco. Na atenção hospitalar, a falta de investimentos estaduais para a ampliação de serviços de saúde nas microrregiões do Norte da Bahia e rescisões contratuais com prestadores comprometeram a oferta de leitos de alta complexidade, de modo que as microrregiões do Vale do São Francisco de Pernambuco passaram a absorver maior parte da demanda hospitalar da RIS. Em Pernambuco, ampliou-se de forma importante, hospitais de caráter público e maioria em gestão direta. Na Bahia, predominava oferta de leitos contratualizados entre a gestão estadual e prestadores privados ou filantrópicos, sendo que o mais importante hospital público da macrorregião se encontrava em gestão indireta. Essas diferenças resultaram em constrangimentos políticos para a gestão estadual da Bahia ampliar serviços na RIS, principalmente nas microrregiões de Senhor do Bonfim e Paulo Afonso. Os relatórios de gestão da Bahia permitiram confirmar que havia déficit de leitos nas microrregiões supracitadas e poucos investimentos concentrados na ampliação de leitos apenas para microrregião de Juazeiro-Ba. Os relatórios também ratificaram que o Norte do estado era a segunda macrorregião com maior déficit de leitos e desde 2013 esse déficit havia aumentado. Além disso, as referências hospitalares definidas para a RIS não tiveram adequações estruturais para atender satisfatoriamente a demanda dos usuários e a falta de financiamento específico para implantação da rede interestadual limitou a capacidade financeira dos estados para os investimentos necessários. Referente à regulação integrada, a inexistência de um sistema de regulação interestadual articulado dificultava a padronização do processo regulatório entre unidades prestadoras de ambos os estados. Havia constantes atravessamentos de atores políticos e decisões arbitrárias de dirigentes das unidades contratualizadas, filantrópicas e em gestão indireta, que comprometiam a autonomia dos gestores e médicos reguladores, resultando na desorganização dos fluxos interestaduais. Atas e relatórios da CRIL apontaram que a população regional cresceu 7% (149 mil pessoas), sem o devido investimento na ampliação de leitos de alta complexidade. A natureza administrativa de dois hospitais importantes no Norte da Bahia, inviabilizava negociações com a gestão estadual para alocar recursos financeiros e incluir estas unidades como executantes da rede interestadual. Por fim, a baixa resolutividade dos hospitais de pequeno porte colaborava para ocorrência de inúmeros encaminhamentos de baixa complexidade para unidades de referência e sem adoção dos critérios de regulação pactuados para a Região. Os constrangimentos evidenciados nesta pesquisa ratificam que a implantação de uma Rede Interestadual de Saúde é um projeto ambicioso, altamente complexo e que se configura como uma arena de disputa, principalmente, do poder econômico e político. Por ter esta natureza, exige uma alta governabilidade dos gestores do SUS, já que envolve um controle de múltiplas variáveis e uma diversidade de atores do cenário local ao nacional, além de sofrer modulações de uma articulação público-privada regressiva com outros atores situados no campo do mercado da saúde, seja no setor privado ou filantrópico.