Apresentação
Este resumo expandido tem como objetivo apresentar alguns dos resultados de uma pesquisa de mestrado que tematizou a Gestão Autônoma da Medicação (GAM) como estratégia de saúde mental implementada no Rio Grande do Sul (RS) através de interligadas e subsequentes pesquisas entre 2014 e 2023, as quais promoveram rodas de conversa resultando em um vasto conjunto de narrativas. A primeira etapa, ocorrida entre 2014 e 2018, deu origem a oito eixos temáticos de análise desse material. Dois desses eixos foram analisados na referida dissertação. A segunda fase, realizada em 2023, por sua vez tematizada neste resumo, deu origem a narrativas que objetivaram discutir o tema da medicamentalização na saúde mental da região metropolitana de Porto Alegre.
A GAM foi criada em 1997 no Quebec, Canadá, como resposta a limitações percebidas pelos usuários da saúde mental em relação ao acesso a informações sobre seus tratamentos. As diferenças sociais, econômicas e políticas exigiram uma transformação do Guia canadense para o contexto brasileiro, onde passou a se denominar GAM-BR. Tal intento ocorreu entre 2009 e 2014, com a ênfase deslocada da retirada do medicamento para a negociação, visando aumentar a participação do usuário na gestão do tratamento.
No RS, a Coordenação de Saúde Mental da Secretaria Estadual da Saúde incorporou a GAM como dispositivo de trabalho em 2013. No entanto, em 2015, com a mudança na gestão do governo estadual, a política de saúde mental de caráter crítico, antimanicomial, foi desinvestida, resultando na retirada da SES da parceria na pesquisa de implementação e disseminação.
Mesmo com essas adversidades, houve a insistência na aposta de participação dos usuários na pesquisa como uma das frentes de resistência dos princípios da Reforma. Em função disso, a narratividade e as abordagens avaliativas de quarta geração foram sustentadas, no intuito de proliferar a participação cogestiva de diferentes sujeitos de pesquisa na produção e validação do conhecimento em saúde mental.
A pesquisa de implementação, entre 2014 e 208, promoveu rodas de conversa que deram origem a narrativas agrupadas em oito eixos temáticos, dos quais dois foram analisados na dissertação que origina este resumo. Por sua vez, a reativação do projeto de implementação, ocorrida em 2023 e objetivando coletar os efeitos da pandemia e do recrudescimento de políticas de contra-reforma no entendimento acerca do tratamento medicamentoso, contou com visitas de apoio em serviços da região metropolitana de Porto Alegre. Como produto dessas visitas, foram elaboradas narrativas em tom ficcional, preservando o sigilo dos locais, ao mesmo passo que dando notícias das problematizações suscitadas no dispositivo da roda de conversa e a busca pelos efeitos da GAM em 2023.
Desenvolvimento
A primeira pista para a referida busca surge com as reverberações da GAM-RS 2014-2018, já que, ao final dessa etapa da pesquisa, foram impressos três mil guias para distribuição entre serviços de saúde interessados. Os guias estavam armazenados na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Para retirada, o interessado deveria preencher um formulário com dados de identificação do solicitante e do serviço ou instituição a que se destinavam os guias solicitados, quantidade de guias retirados e motivo do pedido.
Na posse dos dados dos formulários, percebemos que, até o início da pandemia do Covid-19, dezoito interessados retiraram os guias. Inicialmente, contatamos todos os serviços que receberam os guias GAM, buscando informações sobre a implementação dos grupos. Além disso, propusemos visitas para conhecer e acompanhar as experiências pós-pandemia, ouvindo usuários e trabalhadores, visando a elaboração de futuras pesquisas em conjunto. Recebemos oito respostas, incluindo cidades fora da região metropolitana, tendo sido realizadas, a partir desses retornos, visitas a serviços da rede de atenção psicossocial de Eldorado do Sul e de Esteio. Em Porto Alegre, foram três os serviços visitados, porém a partir de demanda gerada no próprio movimento do grupo de pesquisa - eram serviços que não haviam solicitado anteriormente os guias mas que, tendo notícias dessa movimentação, solicitaram nossa visita e a disponibilização dos guias. Dois desses serviços foram visitados duas vezes, por terem equipes diferentes em cada turno.
Desenvolvemos narrativas das visitas aos serviços de saúde na região metropolitana de Porto Alegre em 2023. Utilizamos o relato dessas visitas como material de análise. As narrativas foram escritas em tom ficcional para preservar a identidade dos serviços e trabalhadores. A estética da escrita foi orientada pelos efeitos experimentados pelo pesquisador ao ouvir esses relatos e ao compará-los com as narrativas anteriores. A narrativa apresentada nos resultados não reflete necessariamente a realidade dos eventos das visitas, mas busca dar ouvidos à multiplicidade de experiências que a GAM abrange.
Resultados
A seguir, apresentamos uma das cenas disparadoras, elaborada a partir dos efeitos das visitas aos serviços da região metropolitana de Porto Alegre em 2023.
Era manhã em um serviço de saúde da região metropolitana de Porto Alegre. Escutava profissionais em uma roda de conversa com temática sobre uso de psicotrópicos. Ambiente hospitalar, pós pandemia de COVID-19. Usávamos máscaras e adesivos identificadores. Passamos por guardas, que prontamente perguntaram nossos objetivos no local. Uma instituição total? Caberia a pergunta no a posteriori da escrita. De repente, na roda, um psiquiatra responde, decidido: “mas vocês têm que ver que às vezes o usuário não sabe o que está acontecendo com ele. Uma vez, uma paciente em surto de mania dizia para todo mundo na equipe que estava ótima. Ela gritava que estava ótima, e a gente sabia que ela não estava. Minha conduta foi medicalizar, facilitar uma contenção física e química. Muitas vezes é o que a gente precisa fazer para que o cuidado se efetive. E isso não é ser manicomial”.
Considerações
O tema da obediência aparece em certa tensão no contexto das visitas de apoio em 2023. Mesmo em tom ficcional, a cena elaborada dá notícias de um recrudescimento da contenção física e química frente a um suposto não saber do usuário. Não temos condições de analisar se tal intensificação está diretamente relacionada com a pandemia, com a especificidade de uma instituição de tecnologia dura ou com a própria rede de saúde mental da região metropolitana de Porto Alegre. De qualquer forma, com as devidas ressalvas, podemos perguntar pelas diferenças entre as regiões, buscando compreender as linhas de forças que atravessam cada uma das redes de saúde. No caso específico da capital gaúcha, levando em consideração a continuidade da pesquisa para além da dissertação de onde partiu este artigo, parece-nos crucial a insistência de intervenções que busquem disputar uma ética alinhada aos princípios da reforma psiquiátrica.
A rede de atenção psicossocial do RS atravessou momentos difíceis de desinvestimento de uma política pública e de qualidade, em um movimento alinhado com a aposta na privatização e individualização do cuidado. Contudo, essas derrotas do campo progressista parecem melhor delimitadas se o enfoque da análise for a disputa de uma hegemonia no Estado. Em alguma medida, a pesquisa GAM cria condições de expressão de profissionais, usuários, acadêmicos e familiares que dizem do agenciamento de coletividades que não estão organizados na mesma lógica que as demandas institucionais de gestão da saúde. Consideramos, por fim, a potência da GAM para o estranhamento de falas como essa, retratada nos resultados, e sinalizamos as possibilidades de aprofundamento dessa discussão em artigos futuros.