Introdução: Partejar, na língua portuguesa, é um verbo que quer dizer “servir de parteira ou parteiro; socorrer ou auxiliar parturientes”. No campo da Saúde Coletiva, o conceito para o termo retém alguns sentidos parar marcar características dos grupos de mulheres e homens que realizam práticas de cuidados ancestrais de partejo, bem como das relações interpessoais e sociais que ocorrem no cotidiano. No território amazônico, o partejar é uma prática de trabalho exercido, em sua maioria, pelas mulheres, denominadas parteiras tradicionais, e, em número menos expressivo, por homens. Esse trabalho apresenta repercussões para o estado de saúde da parturiente e do bebê durante e após a gestação, além de apoiar o sistema de saúde, na medida em que há promoção de cuidado compartilhado, implicando na redução de algum grau de iniquidade em saúde no território. Para registrar o trabalho e a memória das parteiras tradicionais, o Laboratório de História, Políticas Públicas e Saúde na Amazônia (LAHPSA) da Fundação Oswaldo Cruz, Amazônia, desenvolveu o projeto “Redes Vivas e Práticas Populares de Saúde - Conhecimento Tradicional das Parteiras e a Educação Permanente em Saúde para o fortalecimento da rede de atenção à saúde da mulher no Estado do Amazonas”, que objetiva produzir conhecimentos pertinentes e aplicados à Atenção Primária em Saúde na Amazônia, tendo como público-alvo as equipes de saúde ribeirinha e fluvial juntamente com as parteiras tradicionais. A criação, execução e a manutenção do projeto são justificadas pela necessidade de fortalecer o trabalho das parteiras nos territórios, assim como apoiar a articulação com os serviços de saúde. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), registrado sob o nº CAAE nº 62081516.0.0000.0005. Objetivo: Refletir sobre a produção de saúde no “território líquido” da Amazônia brasileira a partir das Oficinas com as Parteiras Tradicionais. Metodologia: Relato de experiência sobre as oficinas com as parteiras tradicionais realizadas entre 2022 e 2023. Desenvolvimento: No período de 2022 a 2023 foram realizadas seis oficinas em diferentes municípios e regiões de saúde do estado do Amazonas, reunindo o total de 286 pessoas, com participação expressiva das parteiras dos respectivos municípios, sendo Tabatinga, n=41 (01 a 03/09/2022); Maués, n=61 (10 e 11/11/2022); Manicoré, n=39 (17 a 19/11/2022); Parintins, n=36 (05 e 06/12/2022); Fonte Boa, n=46 (14 e 15/08/2023); e Manaus, n=63 (06 a 09/11/2023). Esses encontros apresentaram e debateram o próprio trabalho realizado pelas parteiras, bem como dificuldades cotidianas, como acesso às casas das parturientes, adoecimentos, falta ou insuficiência dos recursos materiais básicos para realização de trabalho seguro, e dificuldades de intercâmbio com os sistemas e serviços de saúde; bem como debateram assuntos transversais, como cultura e ancestralidade, gerando interfaces com diversas questões de saúde. Durante as oficinas, por meio dos depoimentos e encenações, as parteiras também contribuíram com suas histórias de vida, que consistem nas principais fontes de produção de informação e conhecimento. Esses registros intensificaram a importância do trabalho das parteiras tradicionais no Amazonas. A metodologia também expressa centralidade na educação permanente em saúde a partir da troca de experiências e conhecimentos entre as parteiras tradicionais e os pesquisadores do LAHPSA, que participam juntos com as parteiras na articulação e na produção do conhecimento. Esse exercício da construção coletiva e compartilhada dos saberes abre espaço para a intensidade da aprendizagem sobre o “território líquido”, que nos convida a compreender a forma adaptativa de viver no território amazônico. O “líquido” é uma metáfora para falar do ciclo das águas, mas também é para se referir às relações entre as pessoas no lugar. O movimento gerado pelas oficinas é importante para manter e articular uma aproximação entre as parteiras, a gestão e trabalhadores dos serviços de saúde e por colocar em destaque o trabalho vivo em ato das parteiras, que se destaca e é desenvolvido a partir de suas vivências, experiências e atuação, sendo também fontes de produção de informação e conhecimento no/para território. O trabalho das parteiras desafia a construção das políticas contra-hegemônicas de cuidado, com inclusão dos saberes tradicionais e das próprias parteiras como agentes do cuidado, de forma que as políticas se tornem mais capilarizadas e capazes de minorar diversos impactos na saúde das parturientes. Essa dinâmica gera uma interface com a saúde pública e o território na perspectiva da organização de vida e do cuidado, que mantém vínculo com a ancestralidade e com a cultura. As oficinas também adotam um caráter ético e político. A metodologia das atividades tem caráter participativo e inclusivo com destaque das parteiras na condução das oficinas em parceria com os pesquisadores do projeto. Essa dinâmica denota um sentido decolonial em que a intenção é manter o trabalho e realizar pesquisa “com”, reconhecendo o protagonismo das parteiras, que exercem o trabalho com senso de responsabilidade e respeito às vidas, às culturas e à ancestralidade. O contrário, ou seja, desenvolver as oficinas “sobre” as parteiras e seus trabalhos seria a reprodução de práticas coloniais responsáveis pelo genocídio e epistemicídio às populações originárias. Com a formatação e atuação do projeto o que se tem proposto é colaborar com o sentido de garantir ocupação dos espaços de forma que a organização da vida e as práticas tradicionais não sejam invisibilizadas e subjugadas por outros povos, por outros pensamentos e por outras formas de produzir saúde. Construir políticas que neguem a história de povos tradicionais, ainda que a Ciência Moderna tenha se ocupado disso, é perpetuar o colonialismo e engendrar o epistemicídio, no sentido de apagamento dos conhecimentos, saberes e culturas ancestrais. Conclusão: Atualmente, não há quem questione que “saúde é um direito de todos e que deve ser garantido mediante ações de políticas públicas”, mas ainda é um desafio garantir a equidade do cuidado nos territórios, mesmo que esteja expresso na Constituição Federal. Como forma de garantir o acesso ao cuidado, o projeto apresentado apoia a organização das parteiras tradicionais, bem como registra as práticas e as memórias do cuidado ancestral. As políticas, para que se configurem como universais, precisam conhecer e estabelecer relação com as pessoas e os territórios onde serão implantadas, caso contrário, segue promovendo as iniquidades em saúde.