Se em alguns momentos, desde que comecei a frequentar o Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, como musicoterapeuta, me interrogo quem está sendo tratado, eu ou aquelas pessoas que ali estão internadas, em nenhum momento é por hipocrisia ou desconhecimento da função que ali exerço. Digo isso, primeiro de tudo e antes de mais nada, por ser também, uma pessoa que faz, a longa data, tratamentos psiquiátricos.
Tenho frequentado diferentes Caps, em mais de uma cidade onde residi, ou consultórios particulares – como é hoje o caso - e ingerido os infinitos remédios psicotrópicos desde tenra idade, sabendo muito bem, ou mais ou menos (diga-se de passagem, que é o que também percebo nos psiquiatras), a eficácia e/ou ineficácia dos mesmos.
Eis que me deparei com a seguinte música, fruto de um trabalho desenvolvido no Hospital Nise da Silveira e que fez certo sentido para mim: “Cuidar do outro é cuidar de mim, cuidar de mim é cuidar do mundo...”. Percebo que outros trilham também o caminho que vejo estar sob os meus pés. Certo dia, veio até mim uma pessoa que reside no “Jurujuba”, como é conhecido o hospital em Niterói. E residir, já é uma palavra que traz uma certa tensão pós reformas psiquiátricas, deveria alguém morar em um hospital? Ela estava andando de collant e calças arriadas pelos corredores e se aproximou dizendo querer ir à praia. Inicialmente, a interroguei: aqui fulana??? De collant??? Ela levantou as calças e me disse: “Morar em frente à praia, e não poder ir lá, é quase uma tortura...”. O Hospital de Jurujuba fica, literalmente, em frente à praia. Somente se fosse surdo, despreparado, ou não quisesse trabalhar, eu poderia deixar de escutar o que ela me disse. Cumpri os trâmites institucionais, tomei para mim a responsabilidade e o dever da escuta e do meu trabalho, dei a mão a ela, combinamos como seria, atravessamos a rua, e fomos a praia...
O mais interessante dessa história, no que se refere ao tema aqui desenvolvido é o seguinte: a alguns meses atrás, planejei uma viagem para a Bahia, com uma companheira, de carro, todo o litoral baiano, várias cidades... Deu tudo errado, nós nos separamos antes da viagem, fui sozinho, foi horrível, e, detalhe importante: não entrei na água um dia sequer em que passei naquelas praias todas... seguia triste, pensativo e cabisbaixo, incluindo a virada do ano novo... E, meses após este dia aqui narrado, continuava, a olhar o mar a distância... Para bom entendedor, a pergunta que fica é a seguinte: quem levou quem a praia naquele dia? Eu, ou aquela pessoa que ali reside??? Quem pegou quem pela mão e levou até a beira do mar, molhando os pés na água fresca e cristalina daquele dia de sol forte???
O que tomei como outra lição, quando pensei e entendi que em nenhum momento saí da minha função, foi o seguinte: durante todo o nosso percurso de ida, banho e volta da praia, ela cantava... uma música, e outra, e outra, e mais outra... Ela sabia muito bem que era com o musicoterapeuta que ela estava e era como que se dissesse cantando para mim, pelo menos na minha imaginação: “Fica tranquilo, você está cumprindo a sua função...”. Me pergunto, talvez meio romântico, se trata-se, de uma função ou de uma missão. Por estes dias, fiquei sabendo, que fui acusado por uma pessoa. Acusado é uma péssima palavra, mas é a impressão que deu (a que ponto chegamos), de ser eu, um defensor do Hospital Psiquiátrico. MENTIRA! Sou defensor sim, das pessoas, dos seres humanos, de gente... e isso é um ato político, e deveria independer de qualquer formação ou discurso, por vezes, hipócrita, ou ingênuo..., mas está perdoado, afinal, “perdoai-lhes, eles não sabem o que fazem!”
Interessante a citação de uma frase atribuída a Jesus, pois, voltando a época do meu ingresso no Hospital de Jurujuba, como profissional iniciante, por vezes na porta, eu que digo não acreditar em Deus, antes de entrar, pedia ao Mesmo: “Me ajude, pois não sei o que vou fazer hoje...” Naqueles dias, em que meu nível de exigência por colocar em prática o que havia aprendido na minha formação em uma pós graduação era enorme, tentando estratégias, me cobrando, me questionando, outra história curiosa ocorreu.
Estava a atender na enfermaria feminina e havia uma moça, de seus vinte e poucos anos, que tinha um trabalho musical, composições, canal no youtube e coisa e tal... O psiquiatra indicou que desse uma atenção ao caso e comecei a atende-la, tanto individualmente quanto no coletivo da enfermaria. Certo dia, em um atendimento coletivo, ela pediu para a acompanhar ao violão tocando uma música dela, disse os acordes e começou a cantar. Com o violão em punho e buscando os acordes, comecei a tremer, coisa que ocorre até hoje, possivelmente, parte por conta dos remédios, do meu sistema nervoso, timidez, ou algo genético também. Alguns ali internados, até hoje notam e comentam. Tomo isso, inclusive, como uma possibilidade, uma ponte, para que, horizontalmente e “de igual para igual”, eu converse com eles, pois alguns também “sofrem” dessa característica. Mas o desfecho final é o que interessa aqui ao tema, pois aquela moça, ali internada, com seus 20 anos a menos do que eu, vendo as minhas mãos tremulas, encosta em meu ombro e me diz: “... calma... não se exija tanto...”.
A pergunta permanece: quem está a cuidar de quem? E a resposta é aquela mencionada neste texto logo acima, que descobri com as pessoas que frequentam o Hospital Nise da Silveira: “... cuidar do outro é cuidar de mim, cuidar de mim é cuidar do mundo...”. Estas e outras histórias, que vivi e vivo no cotidiano do hospital e continuarei a narrar, me fazem não perder a interrogação de qual a minha função enquanto profissional de saúde e pessoa que trabalha em uma instituição chamada de Hospital Psiquiátrico, já condenada a longa data a partir das reformas psiquiátricas. O que posso fazer estando ali, já que tal local ainda existe e eu estou a cumprir uma função como musicoterapeuta e profissional da saúde? A resposta por hora é: não sei! Ou sei... não sei...
Não sei se algum dia saberei, ou poderei responder a tal pergunta. Mas, ouvi por aí, uma certa história, não importa muito, por hora, se verdadeira ou não. Dizem que, na entrada de um certo hospital psiquiátrico, havia uma plaquinha que dizia: “Desse portão para dentro, seja médico, seja paciente, todos são loucos."