Intodução:
O Diabetes Mellitus constitui, sem dúvida alguma, questão de Saúde Pública no Brasil e no mundo. Em nosso país, dados de 2019 revelam que a doença representa a sexta causa isolada de mortalidade (The Global Burden of Disease Study, 2019). Há de se considerar, ainda, o impacto em termos de morbidade que os danos secundários do diabetes têm sobre a população. Neste sentido, ressalta-se o exemplo da Doença Renal do Diabetes, que representa, atualmente, a principal causa de ingresso em terapia renal substitutiva no Brasil.
No intuito de oferecer ferramentas aos profissionais de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), o Ministério da Saúde instiuiu Programa direcionado à atenção aos portadores de Diabetes, incluído no rol das doenças crônicas. O atendimento aos pacientes diabéticos na Atenção Básica, desta maneira, é realizado pelos Médicos de Família, norteado pelas diretrizes do Programa e auxiliados por especialistas sob matriciamento.
Na prática, algumas condições inerentes à lógica dos atendimentos nas UBSs (como a escassez de profissionais disponíveis em alguns municípios e o exíguo tempo de consulta, em razão da alta demanda) e, talvez mais importante, características inerentes à própria condição clínica (como a heterogeneidade de apresentações clínicas e a necessidade de consolidação de um aprendizado específico por parte dos pacientes – a Educação em Diabetes) contribuem para um resultado aquém do desejado.
Tomemos como exemplo de contraponto outra patologia de grande impacto em termos de morbimortalidade: a Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS). Hipertensão Arterial e Diabetes são doenças crônicas que recebem abordagens semelhantes por parte da Atenção Básica (existem programas direcionados aos portadores das patologias). No entanto, o paciente hipertenso costuma responder bem à lógica propositiva das consultas habituais, posto que, uma vez que receba a medicação e use corretamente, terá redução dos níveis pressóricos. Já a obtenção de controle metabólico de um paciente diabético depende da compreensão, por parte dele, de toda uma dinâmica própria da patologia, da mudança de hábitos e, no caso dos pacientes insulinizados, do contato frequente com profissionais de saúde (ao menos no início de sua jornada) para ajustes e prevenção de hipoglicemias graves.
O controle do Diabetes requer uma lógica de atendimento diferente da vigente. Desde quando iniciei minha atuação como endocrinologista em clínica popular em um município do Litoral Norte/RS, tenho me surpreeendido com a quantidade de pacientes diabéticos que já têm diagnóstico há anos e chegam à primeira consulta em descompensação metabólica dizendo-me : “Doutora, eu não entendo... Uma hora minha diabetes está alta, na outra está baixa...” Falas como esta evidenciam o total desconhecimento dos pacientes sobre a dinâmica da flutuação glicêmica, que lhes parece algo totalmente incontrolável e assustador.
Desenvolvimento
Iniciei minha atuação na clínica em questão em setembro de 2021. A grande maioria dos pacientes que atendo é usuária do SUS e recorre à clínica em busca do especialista.
Trabalho com agendamentos a cada 30 minutos, mas tenho liberdade para estender o tempo de consulta o quanto considerar necessário.
A percepção que tive ao atender pacientes diabéticos oriundos dos vários municípios do Litoral Norte Gaúcho, ao longo destes dois anos e meio, coadunou-se com o que os dados estatísticos nos revelam: a despeito de todo o conhecimento já acumulado sobre a doença pela comunidade médica, o controle é precário e o paciente acaba (mesmo após longos anos de doença) não sendo capacitado para automonitoração, reconhecimento de complicações agudas e crônicas e mudança de estilo de vida. Pacientes insulinizados exibindo mau controle (hemoglobina glicada de 10 a 12%) com frequência relatam que a prescrição é repetida, sem qualquer ajuste, por anos. Isto resulta, na prática, no percentual reduzido de pacientes que conseguem manter o parâmetro Hemoglobina Glicada dentro da meta de controle (7% para adultos até 65 anos), o que restou demonstrado no braço brasileiro de recente Coorte mundial em Diabetes.
Digna de nota, ainda, é a normalização de uma percepção equivocada acerca do potencial mórbido da doença. Como o controle é ruim na maior parte da população, é comum um temor exagerado, pois muitos associam as complicações secundárias graves que familiares próximos desenvolveram à evolução habitual.
Diante deste cenário, estruturei minhas consultas de primeira vez de modo a percorrer, durante anamnese dirigida, necessariamente, alguns temas: dinâmica da flutuação glicêmica, hábitos alimentares, reconhecimento de hiper e hipoglicemias e importância da atividade física. Para os pacientes insulinizados, forneço meu contato e oriento que me enviem foto da grade de anotações de glicemias capilares. Desta maneira, passei a conseguir orientá-los sobre titulação.
A abordagem acerca da flutuação glicêmica consiste em explicar que “temos glicose circulando 24 horas por dia”, que as verificações representam pontos isolados e que existem as incursões glicêmicas. Nos retorno, passo a retomar este ponto e acrescento as interferências que infecção, stress emocional e composição das refeições têm sobre a dinâmica.
Ao acessar hábitos alimentares, procuro, inicialmente, conhecer a realidade do paciente e, após, apresento o conceito de “prato ideal” do Ministério da Saúde, com um desenho.
Já o reconhecimento de hiper e hipoglicemias e o estímulo à atividade física levam em consideração a minha impressão sobre a capacidade de entendimento do paciente e a realidade de sua rotina.
Resultados
Apesar de ainda carecerem de tratamento estatístico, os resultados têm sido, à percepção clínica, surpreendentes. A melhora, expressa em termos dos parâmetros hemoglobina glicada, tempo no alvo e patamar glicêmico tem sido evidente. Alguns pacientes retornaram à consulta tão aderidos à mudança de estilo de vida e apropriados do conhecimento que precisei desprescrever medicação.
A satisfação decorrente da apropriação do conhecimento tem reduzido o estresse emocional dos pacientes, o que acaba por favorecer o próprio controle glicêmico e gerar sensação de bem-estar. Melhora objetiva também tem sido observada na sintomatologia dos pacientes com Neuropatia Diabética – redução de dor e parestesias, apenas pela retomada do controle metabólico.
Dificuldades encontradas têm sido, primordialmente, as barreiras culturais.
Considerações Finais
O conjunto de pacientes diabéticos é heterogêneo e o bom controle glicêmico requer atenção às características individuais de cada paciente. Além disso, o manejo da doença requer o conhecimento e internalização, por parte do paciente, de um conjunto de conceitos específico. O processo de construção deste conhecimento é conhecido como Educação em Diabetes.
Como ocorre em qualquer processo educativo, fazem-se necessárias algumas competências por parte do educador, como a capacidade de escuta e flexibilidade nas proposições.
Há, também, o tempo necessário à consolidação dos conceitos e transposição de barreiras, ora de natureza emocional, ora psíquica, ora cultural.
O formato atual da atenção que se dá ao problema, na atualidade, parece não atender aos requisitos necessários ao seu sucesso. Se há desejo de que esta situação se reverta, é importante que se reflita sobre políticas públicas que, de fato, produzam resultados.
Uma possibilidade seria a criação de centros multidisciplinares para uma atenção especializada a estes pacientes, de modo a atender à demanda, por exemplo, dos usuários de insulina. Se o tempo de consulta é um limitador, as equipes poderiam dividir tarefas, como solução. Orientação acerca de titulação, do reconhecimento de hipoglicemias e questões relativas ao autocuidado poderiam ser, possivelmente, executadas por profissionais enfermeiros. Nutricionistas e psicólogos também poderiam oferecer importante contribuição.
Outra alternativa seria o aprimoramento do matriciamento, com foco em UBSs de referência, às quais se direcionaria capacitação e onde se formariam equipes multidisciplinares.