A prática em saúde dos povos indígenas tem sido um desafio enfrentado pelos profissionais da área, devido ao despreparo na formação desses atores em atuar com a diversidade de etnias e suas culturas existentes em solo nacional. O exercício profissional impõe um conhecimento técnico-científico biomédico e hegemônico que ignora a perspectiva transdisciplinar e intercultural na execução das atividades em campo, ou seja, despreza a importância das ciências sociais, humanas e dos saberes tradicionais. Sem o devido direcionamento no processo de ensino-aprendizagem destes profissionais durante a jornada acadêmica, que seja orientada para a vivência dos diferentes contextos, etnias e à saúde indígena, estão propensos a uma oferta ineficaz de acolhimento desta população com produção de ideologias neocoloniais, racistas e opressoras, de modo a desnaturalizar a dimensão da cultura, da vida e da subjetividade dos povos indígenas.
O racismo estrutural, inerente das instituições de ensino superior (IES), compactua com esse despreparo aos discentes da área de saúde, uma vez que em suas Propostas Pedagógicas Curriculares (PPC’s), é escassa a abordagem não só para as questões relativas à saúde indígena, mas também no que concerne ao comprometimento ético, político e engajamento social que dê o valor necessário à cultura e a forma de existir deste povo, levando ao epistemicídio. Sem disciplinas que discutam a Política Nacional à Saúde da População Indígena (PNASP), Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta (PNSIPCF), Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPCs) no SUS e o referencial teórico sobre interculturalidade, vigora a manutenção do etnocídio cultural vigente nas práticas em saúde devido ao olhar “eurobrancocentrado” da ciência. Com isso, a formação acadêmica é falha em promover a interculturalidade nas práticas em saúde, assim como a quase inexistência de reciclagem, treinamentos ou cursos para os trabalhadores afeta as relações com a comunidade, que ao invés de promover o protagonismo das comunidades originárias, dificulta a capacidade resolutiva dos problemas e desvaloriza as dimensões da vida da população para além do biológico. As práticas biomédicas influenciam para baixa interlocução entre o profissional e o paciente, reduzem a capacidade de escuta e negociação, podendo provocar resistência ou dificuldades no tratamento. Sendo assim, a Política Pública é um instrumento que assegura a atenção à saúde, respeitando as especificidades culturais, sociais, cosmológicas, políticas e geográficas de cada povo, garantindo aos indígenas seus direitos territoriais, culturais e manutenção étnica. Para isto, é preciso somar à interculturalidade na atuação, pois se considera a cosmovisão da população indígena e práticas não negacionistas do que é culturalmente distinto, permitindo uma associação de saberes que enriquece as relações estabelecidas no contexto de saúde e doença, evitando o histórico de violência e trauma que cada etnia enfrenta, as crenças, os rituais e a relação sagrada com a terra, promovendo atuação singular, humanizada, equidade de acesso e a integralidade da assistência a uma prática horizontal.
A pesquisa que resultou neste artigo teve por objetivo verificar como as equipes multiprofissionais de saúde indígena (EMSI) operam a interculturalidade na prática com os povos indígenas, identificando os desafios enfrentados no atendimento ofertado pelos profissionais que atuam no polo base Paulo Afonso/BA, um dos dez núcleos de Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI) que compõem o Distrito Sanitário Especial Indígena da Bahia (DSEI-BA). O polo base de Paulo Afonso é responsável por catorze etnias diferentes, ou seja, Tuxá, Xukuru-Kariri, Atikum, Fulni-Ô, Truká, Pankaranré, Kantaruré, Kaimbé, Kambiwá, Tuxí, Tumbalalá, Pankaranú, Kariri Xocó e Pankará, abrangendo quatro municípios: Rodelas, Glória, Paulo Afonso e Abaré, no Estado da Bahia, região Nordeste do Brasil.
O método de pesquisa utilizado foi o exploratório, com abordagem qualitativa, realizado no polo base de Paulo Afonso (DSEI/BA). Os sujeitos do estudo foram 17 profissionais que atuam nas EMSI, sendo 7 técnicos de enfermagem, 1 auxiliar de saúde bucal, 2 agentes de Saúde Indígena, 3 Agentes Indígenas de Saneamento, 1 Enfermeira, 1 nutricionista e 2 dentistas, portanto, dos entrevistados apenas 4 pessoas possuem nível superior. A coleta de dados foi feita a partir do grupo focal com 3 encontros agrupados por nível de formação semelhante à plataforma Google Meet. Os dados foram analisados a partir da técnica de análise de conteúdo temática. O objetivo geral do estudo consistiu em compreender como a interculturalidade se estabelece na prática cotidiana dos atores da saúde. Já os objetivos específicos foram levantar a formação acadêmica dos profissionais voltados as especificidades e diversidades da cultura indígena, além de verificar as estratégias e os desafios no atendimento intercultural nas comunidades abrangentes pelo núcleo.
O estudo debate como a academia não instrumentaliza os profissionais para atuar com os povos originários, e em campo, sem capacitação ou cursos de aperfeiçoamento, acarreta desajustes em suas condutas e reprodução de violências, no que tange ao respeito da diversidade e saberes tradicionais. A cosmovisão contrapõe o monoculturalismo, esta tida como única visão centrada em padrões culturais de grupos dominantes, o qual é outro fator persuasivo na prática intercultural à saúde da população indígena, pela imposição de modelos tradicionais de cuidados em saúde. Também foi identificada a ausência de vínculo da EMSI com lideranças indígenas, como benzedeiras, parteiras e pajés como parceiros nesses espaços a fim de criar uma atuação harmoniosa e humanizada.
A investigação, a partir da análise de conteúdo temática, baseada em dados empíricos do projeto de pesquisa “Interculturalidade em Saúde na Atenção à População Indígena”, apurou como as experiências humanas dos profissionais manifestam na interculturalidade em saúde a partir da atuação em saúde indígena, conforme preconiza a Política de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas.
Os resultados apontaram que a interculturalidade foi entendida apenas como respeito à cultura, não conectada com outros fatores conflitivos, como saber hegemônico, que influencia a atuação dos atores nas comunidades Os desafios denunciam para uma complexidade de problemas que estão para além da formação biomédica, tais como: atritos e falhas na comunicação e interação entre os pacientes e profissionais, questões relacionadas à infraestrutura não ideal para assistência, vínculos empregatícios frágeis, baixas remunerações, falta de veículos ou combustível para o deslocamento dos profissionais até a comunidade, bem como ausência de capacitação. O estudo também demonstrou a ausência de ações estratégicas para práticas que reduzem as tensões promovida pelo choque de culturas, a baixa adesão ao tratamento e dificuldades da comunidade se vincular aos profissionais para uma relação de confiança e humanizada. Todos os fatores anunciados neste trabalho afetam a interculturalidade na atenção à saúde da população indígena, pois o método utilizado no atendimento é ineficaz, o que leva à equipe os conflitos entre as culturas, abandono do plano terapêutico e atendimentos que causam violências simbólicas.