Apresentação
Nas últimas três décadas, o Brasil experimentou transformações significativas em sua demografia, economia e urbanização, impactando diretamente a qualidade de vida da sua população. No setor da saúde, foi implementada a transição para o Sistema Único de Saúde (SUS), como resultado da luta pela Reforma Sanitária. Contudo, persistem desafios notáveis, especialmente relacionados à violência obstétrica (VO), que atinge predominantemente mulheres de baixa renda, negras e com níveis educacionais mais baixos.
Apesar do crescente reconhecimento desse problema, o Brasil ainda não possui uma legislação federal específica para lidar com ele, evidenciando a necessidade urgente de investimentos em sensibilização e capacitação para prevenir efetivamente essa forma de violência e proteger os direitos das mulheres. Este estudo se propõe a realizar uma análise crítica da situação da VO no Brasil, com foco em sua regulação legal.
Desenvolvimento do trabalho
Metodologia
Este estudo investigou a problemática da VO por meio de uma abordagem qualiquantitativa e exploratória-descritiva. Foram selecionados artigos em português, inglês ou espanhol, disponíveis na íntegra e indexados nas bases de dados Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e Scientific Electronic Library Online (SciELO) entre 2018 e agosto de 2023. Excluíram-se estudos do tipo Guia de Prática Clínica, Estudos Diagnósticos, de Etiologia e de Rastreamento, além de duplicatas e estudos fora do escopo da pesquisa.
Realizou-se, também, uma pesquisa documental nos portais do Congresso Nacional e das Assembleias Legislativas estaduais, empregando os termos “violência obstétrica”, “parto humanizado” e “humanização do parto”, visando identificar propostas legislativas, projetos de lei e discussões pertinentes à temática.
Resultados e Discussão
Na pesquisa, 37 estudos foram identificados, com 21 na BVS e 16 na SciELO. Dos 11 estudos elegíveis, a maioria concentra-se nos relatos de mulheres sobre VO, com poucas pesquisas nas regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil. Essa lacuna de dados e conhecimento sobre os direitos à autonomia é preocupante e foi abordada em apenas 7 artigos.
Apenas 2 estudos exploraram as perspectivas e desafios dos profissionais de saúde, principalmente médicos obstetras, ao lidar com a objeção de consciência, destacando questões éticas e de corporativismo. Do mesmo modo, apenas 2 estudos abordaram questões jurídicas específicas, evidenciando a escassez de pesquisas jurídicas sobre VO.
Em relação às legislações estaduais, apenas 4 estados não possuem leis específicas sobre o tema. Quanto ao uso do termo “violência obstétrica”, 14 estados o adotam, enquanto 8 preferem a expressão “humanização do parto” ou “parto humanizado”. Dessas leis, 19 são informativas, fornecendo conceitos sobre VO e humanização do parto, enquanto 28 são preventivas, incluindo campanhas e exigências de placas informativas. Apenas 2 leis possuem caráter punitivo, resultando em advertências e/ou multas.
Terminologia e Perspectivas
Na literatura, há divergências quanto aos termos que descrevem o desrespeito, abuso e violência contra mulheres durante a gravidez e o parto. O termo “violência obstétrica” enfrenta resistência entre os profissionais de saúde devido à sua associação com a medicalização do parto, o que dificulta a realização de estudos epidemiológicos. Além disso, muitos profissionais de saúde não reconhecem certos comportamentos como VO, devido à falta de estímulos durante a formação médica e à normalização de práticas rotineiras, o que torna desafiante a implementação de medidas eficazes de prevenção e intervenção.
Posicionamentos relacionados ao protecionismo de classe evidenciam uma perspectiva paternalista tanto no Conselho Federal de Medicina (CFM) quanto no Ministério da Saúde (MS), contrastando com a busca pela autonomia das mulheres. Uma perspectiva mais humanizada na assistência obstétrica, baseada em diálogo e respeito mútuo, é essencial, destacando a necessidade de uma bioética interdisciplinar e crítica.
Perspectivas sobre a Assistência ao Parto no Brasil
A pesquisa “Nascer no Brasil”, realizada entre 2011 e 2012, revela que a taxa de cesarianas no país supera em mais de 3 vezes a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS). Apesar de muitas mulheres desejarem um parto normal, elas enfrentam obstáculos para alcançá-lo. Estudos regionais, por sua vez, indicam altos índices de VO em diversas regiões do país, incluindo casos de negligência e abuso por parte dos profissionais de saúde.
A exposição “Sentidos do Nascer”, realizada em Minas Gerais em 2020, também evidenciou uma incidência significativa de VO entre as participantes. Além disso, a escassez de dados abrangentes sobre práticas de saúde em comunidades indígenas e quilombolas demonstra um claro exemplo de racismo institucional. Como resultado, todo esse processo culmina em intervenções biomédicas que ignoram as particularidades socioculturais das mulheres.
No âmbito jurídico, observa-se uma lacuna significativa em termos de debates e reconhecimento da VO. Apesar da maioria dos casos se concentrar na responsabilização civil, a fragilidade do arcabouço legal impede o acesso à justiça. As leis estaduais, frequentemente, não tratam de forma adequada essa forma de violência. Experiências internacionais, como as legislações da Argentina e do México, evidenciam a necessidade de aprimoramentos no Brasil. A abordagem fragmentada e a falta de uma definição precisa refletem, principalmente, a ausência de medidas preventivas específicas. Ademais, a morosidade na tramitação de projetos de lei reforça a urgência de ações para evitar violações e óbitos maternos evitáveis.
Considerações finais
A falta de consenso na definição da VO e os obstáculos enfrentados pelos profissionais de saúde contribuem a perpetuação de práticas obsoletas, revelando uma falta de consciência dos direitos das mulheres durante o parto. É fundamental que a abordagem médica amadureça, promovendo o diálogo e o respeito mútuo.
No contexto jurídico, observa-se uma lacuna de conhecimento sobre a VO por parte dos magistrados, comprometendo assim a integridade dos direitos das mulheres. Ao examinar as legislações estaduais, observa-se uma perspectiva fragmentada em relação à VO, com alguns estados carecendo de definições precisas e medidas preventivas específicas. Isso sublinha a urgência de uma definição clara e de políticas públicas eficazes para prevenir a VO em âmbito nacional.
Uma abordagem transdisciplinar é fundamental para garantir uma assistência ao parto segura e centrada nas necessidades das mulheres. Assim, somente com o reconhecimento, a sensibilização e a ação coletiva, será possível assegurar que esse momento único seja lembrado como um símbolo de respeito aos direitos integrais das mulheres.