“Era uma casa, mas não só": processos de trabalho e de cuidado em uma RAPS Infantojuvenil

  • Author
  • Solanne Gonçalves Alves
  • Co-authors
  • Maria Paula Cerqueira Gomes
  • Abstract
  • Este trabalho é parte integrante de uma pesquisa de tese de doutorado cujo objetivo foi o de refletir sobre o processo de trabalho e de cuidado de profissionais e serviços componentes da Rede de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (RAPS) de um município do estado do Rio de Janeiro. Assim, ao final do trabalho de campo que tomou como base a cartografia, foi realizada uma devolutiva à equipe da Unidade de Acolhimento Infantojuvenil (UAI), durante sua reunião/supervisão de equipe. Para tanto, escrevemos uma paródia, a qual foi lida e a partir dela foi possível discutir sobre as potencialidades e dificuldades construídas e enfrentadas no cotidiano do trabalho e cuidado a/com adolescentes vulnerabilizades. 

    "Era uma casa muito animada

    mas também era serviço, não só morada

    Tinha teto, mas parecia mandada

    colchão no chão da sala, paredes pintadas

    E tinha briga, que era apaziguada

     

    Ninguém podia entrar à toa não

    A UAI é para adolescentes que precisam de atenção

     

    Ninguém da equipe podia sentar-se à rede

    Porque ela era de Y., na maioria das vezes

     

    Parte da equipe pede por REGRAS, ‘pros adolescentes respeitar’

    E essas regras ninguém pode quebrar

    Mas estar na UAI tem as pactuações do PTS, que é singular

     

    Ninguém da equipe quer se eximir

    mas cuidar na atenção psicossocial tem que se descobrir

    e acolher e inventar e estar ali

     

    Só se podia entrar pelo portão

    mas alguns pulavam muro adentro quando ouviam “não”

    O portão às vezes era o CAPSi

    “Tem que passar por atendimento lá, a partir das 8:00, antes de entrar aqui”

    E no caminho entre um e outro é que é possível falar e ouvir

     

    O muro às vezes é o CAPSi

    “Tem que passar por atendimento lá antes e só depois voltar pra UAI”

    E no caminho entre um e outro é que é possível se abrir

     

    A janela às vezes é o CAPSi

    “Tem que repactuar o PTS para estar aqui”

    Corpos precisam de aberturas para sentir 

     

    Os combinados são repetidos até se ouvir,

    mas também são adaptados para que se possam cumprir

    ou recombinados senão conseguir 

    só não são iguais, senão estariam fadados a falir

     

    Mas é tudo feito com muito esmero

    Cuidar de adolescentes, que precisam de atenção, tem que ter cautela

     

    Mas a UAI é conduzida com muito esmero

    Cuidar dos que sofrem, em liberdade, precisa um pouco de tutela

     

    Mas para cumprir o mandado atenção psicossocial tem que ter muito esmero pois

    Reduzir danos, diminuir riscos, esperançar afetos

    a quem sofre e comete violências concretas

    não é ficar impune, sem regra, ou no zero a zero

    É cuidar na limitação de cada um que sofre, papo reto."

       

      A lógica da UAI é ser uma casa, mas não “só”. O “só” nessa afirmação tem uma dupla convocação, qual seja: como advérbio e adjetivo. Como advérbio, no sentido de considerar que é um dos pontos da RAPS, na atenção residencial de caráter transitório, sendo então serviço e também casa. E como adjetivo, posto que a UAI sendo um serviço de saúde (mental) não pode ser ou estar sozinho na rede (intra e intersetorial), tampouco algum profissional da equipe na lida diária.

    A UAI, enquanto território de encontros capazes de produzir cuidado, precisa funcionar como um lugar-casa, próximo fisicamente, e, no modo de operar consonante ao CAPSi (Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil), mas também um serviço residencial de caráter transitório ao oferecer uma acolhida aos (às) adolescentes que estão sem esta experiência de suporte na vida, em desenvolvimento. Construindo com eles (elas) um mínimo de território existencial, de contorno, que funcione como ancoragem contra o caos, ou mesmo junto ao caos, conforme for possível. Pois, caóticas e violentas são as experiências de vida que a maioria dessas crianças e adolescentes já vivenciaram.           

    O termo território é definido por diversos autores e também está relacionado aos sentidos etológico, subjetivo, sociológico e geográfico do conceito; refere-se a uma construção provisória em processos de desterritorialização e reterritorialização. A territorialização implica, concomitantemente, escavação e aberturas para que algo ou alguém entre, ou aquilo/aquele (a) seja lançado para fora, em função das forças em obra que o território possa abrigar. 

    Aqui, a escavação e as aberturas são a disponibilidade profissional para o encontro com a lógica do cuidado em liberdade, na atenção psicossocial; com demais profissionais da equipe, suas perspectivas de vida e trabalho; e com os (as) adolescentes, suas histórias, angústias, esquisitices, rebeldias, maluquices, multiformas de demonstrar afetos e reexistir numa sociedade que os (as) violentam dia a dia. Somente a partir da abertura ao encontro é possível acolher, construir vínculos, como percurso às possibilidades de cuidado. 

          Em conformidade a uma direção de cuidado visando a desinstitucionalização, essa ambiguidade - UAI/casa - do serviço residencial de caráter transitório, questionada por parte da equipe, traz a complexidade ao ser mais de uma possibilidade ao mesmo tempo, ao se fazer distinta para cada usuárie, assim como é complexa a vida desses (as) adolescentes vulnerabilizades. As regras na UAI devem existir, assim como suas flexibilizações, como estratégias facilitadoras para a criação e manutenção de vínculo, do território existencial de cada adolescente e de todes, concomitantemente. 

    Por isso, o conceito da equidade em saúde se faz tão importante, entendendo-a como o provimento de serviços para necessidades específicas de grupos ou pessoas, a qual requer sujeitos e coletividades com poder e autonomia para enunciar seus desejos e necessidades. Sobretudo a conceituação de equidade horizontal, sendo o tratamento desigual para sujeites desiguais. 

    Se é preciso pertencer a um território para desterritorializar-se, entrar/estar na UAI/casa é para não estar (sob o risco da/) na rua, é para estar na UAI/casa para acessar outros recursos (territoriais) que lhe são de direito e sair da UAI/casa para acessar outras formas de morar, circular pela cidade e produzir vida. Entrar e sair (re) pactuando possibilidades de estadas e estadias: processos que requerem inclusão de usuárie, trabalho em equipe(s), acionamento de outros dispositivos, com sistemáticas discussões e (re)avaliações, tendo o/a adolescente como protagonista das/nas cenas de cuidado de si. 

  • Keywords
  • Redução do Dano, Defesa da Criança e do Adolescente, Serviços de Saúde Mental; Cartografia
  • Subject Area
  • EIXO 6 – Direito à Saúde e Relações Étnico-Raciais, de Classe, Gênero e Sexualidade
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