O presente resumo busca compartilhar uma experiência prática de estágio em uma ala psiquiátrica de um hospital geral. Sendo assim, é importante começar ressaltando o compromisso ético e profissional com a luta antimanicomial, além é claro, de toda a luta por um cuidado em saúde mental que não seja reducionista a um modo de existir do sujeito contemporâneo, por uma política de saúde mental que não se resuma a diagnósticos e classificações nosológicas de uma “saúde mental”, baseada em um modelo biomédico, estanque e sem possibilidades de devires.
O relato de experiência tem como referência um estágio curricular da graduação em Psicologia em uma ala psiquiátrica de um hospital geral no Rio Grande do Sul. O relatório final de estágio, redigido a partir de anotações de um diário de campo e debates em supervisões semanais, serve de base para a escrita deste resumo. A ala psiquiátrica tinha capacidade para atender, aproximadamente, 20 pacientes adultos, homens e mulheres. A maioria das internações eram involuntárias ou compulsórias. O tempo médio de hospitalização era de 30 a 90 dias, contudo os pacientes tinham altas taxas de reinternação. Em alguns relatos, destaca-se o fato dos usuários do serviço ficarem mais tempo durante o ano morando na ala psiquiátrica do que nas suas residências convivendo com familiares e comunidades.
Com isso posto, ressalta-se que desde a Reforma Psiquiátrica Brasileira pouco progresso foi visto, devido a uma alta medicalização de sujeitos que possuem suas potencialidades pausadas ou até mesmo encerradas em prol de um discurso neuro-psiquiátrico dominante; se medicaliza o sintoma sem uma compreensão bilateral de suas origens, sem uma classificação nosológica de história de vida do sujeito, por uma tentativa de normalizar, ou melhor, tipificar os sujeitos em um padrão ouro de comportamento e funcionalidade.
Então, é possível rememorar que desde muito tempo a ideia de um funcionamento de um indivíduo considerado fora dos padrões da sociedade era passível de um exercício de controle do corpo desta pessoa para uma exclusão da sociedade, com fins por ora higienistas, por ora mascarados de saber médico, e por ora ambos. As alas psiquiátricas se distanciam dos manicômios na declaração nominal, haja vista que, a função primordial se mantêm a de despejo dos incômodos familiares ou societários de uma cidade, Estado ou País. As pessoas que estão -estiveram e estarão- nesses locais estão despejadas e rotuladas por uma numeração e nomeação de um “transtorno” além de terem seu corpo estigmatizado e drogado dia após dia, devido ao fato que, o médico psiquiatra funciona tal qual um pai primevo, um chefe totêmico, daquele local já que o que ele decide é posto como lei e como destino para as pessoas e subsequentemente para o local.
A revolução dos psicofármacos começa nos Estados Unidos com a fluoxetina, conhecido popularmente como a pílula da felicidade, todavia, isso não bastou pra acalentar o mal estar sofrido pelo sujeito na cultura vigente da época o que gerou mais estudos e tentativas de colocar o sofrimento nas letras miúdas da vida, sem muito destaque e principalmente sem muito tempo para sentir. Pois a dor é da ordem do Eu endereçado a si, é impossível que se sinta o que o outro sente então a dor pode ser entendida como solitária, ou solipsista nas palavras do autor; já o sofrimento é sempre endereçado a algum outro de algum modo ela é alteritária, então a dor é individual, mas o sofrimento coletivo. Todavia, se em uma época de um capitalismo onde as pessoas não tem tempo e, às vezes, são até mesmo desencorajadas a compartilhar suas dores, o desamparo toma conta. Desse modo, é preciso de uma solução tão rápida quanto as demandas de mercado para que a nossa psique não perca os rumos de uma produtividade “funcional”.
Em uma ala psiquiátrica o discurso que rege o funcionamento é, na maioria das vezes, o discurso medicalizante e medicamentalizante. Ou seja, é a partir de uma lógica reducionista do sujeito ao seu sintoma/doença que a ala operará para um “bem-estar” e para um suposto desaparecimento dos sintomas do indivíduo. Um exemplo é o caso de J. uma mulher adulta de 42 anos, divorciada e com dois filhos, que foi internada na ala psiquiátrica por abuso de substâncias. Em um certo dia, J. começou a ficar preocupada com sua condição e com o local que estava, alterando-se emocionalmente com crises de choro e dificuldade na comunicação. O estagiário de Psicologia então realizou uma escuta qualificada com a paciente, que conseguiu se acalmar e entender um pouco mais a sua situação, além de conseguir adormecer. Todavia, a equipe de médicos e enfermeiros preparou Haloperidol com Prometazina (HF), uma medicação para sedar a paciente. A intenção da equipe era medicar a paciente com sedativo sem fazer qualquer tentativa de dialogar porque ela estava chorando. Com esse caso, é possível ver como a resposta para um momento de crise na ala psiquiátrica costuma ser a medicamentalização, sem buscar um atendimento humanizado do paciente.
Outro caso que evidencia este discurso medicalizante é o de L, um homem de aproximadamente 30 anos, solteiro, que trabalha para a prefeitura. L, é constantemente internado por abuso de cigarro e outras substâncias, além de episódios em que perde o contato com a realidade. Na internação acompanhada pelo estagiário de Psicologia, L. tinha como objetivo parar de fumar, zerar completamente os três maços diários de cigarro. Em diversos acompanhamentos terapêuticos pelas dependências da ala psiquiátrica, o estagiário conversou com L. sobre o que era fumar para ele, e as respostas foram decantando de “eu gosto de fumar”, “eu gosto de soltar a fumaça”, “me faz sentir homem”, para enfim “me lembra o meu pai”. Quando chegou-se ao ponto de L. relacionar o sentido de fumar com a sua relação paterna, começou a aceitar a ideia da redução progressiva de dois maços e meio por dia no primeiro mês, dois maços por dia no próximo mês e assim sucessivamente. Até o momento em que L. foi consultar com o psiquiatra da ala e ele definiu uma condição para L.: “Ou você promete parar de fumar ou não sai daqui”. L prometeu que ficaria imediatamente abstinente de cigarros, saiu da ala psiquiátrica, mas em algumas semanas retornou porque voltou a fumar intensamente. A proposição biomédica de suprimir o sintoma falhou enquanto ela foi imposta. A equipe de Psicologia buscou promover a autonomia de L. no seu processo terapêutico por semanas, entretanto esse trabalho foi deposto por um ultimato do médico: “ou você obedece a mim ou sua liberdade é restringida”
Os relatos desses casos atendidos em uma ala psiquiátrica de um hospital geral demonstram como a luta antimanicomial e a humanização dos atendimentos em saúde mental ainda apresentam desafios na sua implementação em serviços hospitalares. Por fim, esse resumo também exemplifica como o trabalho da Psicologia pode ir para além das quatro paredes dos consultórios privados, construindo intervenções que transcendam perspectivas individualizantes e reducionistas do sujeito. Portanto, a Psicologia pode colaborar para a construção de cuidados em saúde mental com uma escuta integrada do sujeito e de todas suas capacidades e devires, assim como contribuir para uma necessária ruptura de um modelo biomédico focado na patologização e normalização de seres humanos.