Apresentação: Este trabalho versa sobre a experiência da I Conferência Nacional Livre de Saúde Mental da População Negra (1ª CLNSMPN), construída como evento preparatório para a 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental Domingos Sávio (5ª CNSM). O objetivo deste resumo é apresentar o processo de mobilização dos movimentos negros do Brasil, a partir do Fórum de Direitos Humanos, equidade de raça e gênero da Rede Unida, para que a discussão de saúde mental fosse racializada. Trazemos também as etapas de construção, os regulamentos estabelecidos, o evento em si e, por final, as propostas aprovadas e que devem ser defendidas dentro do controle social.
Desenvolvimento: As Conferências Livres constituem espaços de participação social que permitem a organização e participação da sociedade civil no controle social com proposições para as políticas públicas fora da institucionalidade dos conselhos municipais, estaduais e nacional. O dispositivo das conferências livres foi criado justamente para evitar o esvaziamento das discussões a partir das barreiras criadas dentro dos conselhos do controle social. A Associação Rede Unida, por uma iniciativa do Fórum dos Direitos Humanos, Diversidade, Equidade de Raça e Gênero e apoio do Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz (ASFOC), do Coletivo de Entidades Negras de São Paulo (CONEN), além de diversas outras entidades do Movimento Negro, realizou a 1ª CLNSMPN, com o tema: “A Política de Saúde Mental como Direito e a Garantia de Atenção Integral à Saúde da População Negra”.
As práticas discriminatórias oriundas do racismo que transversalizam todas as ações e políticas que modulam a sociedade brasileira, incidem e criam barreiras, dificultando o acesso à saúde mental das pessoas negras; reduzem as possibilidades de ascensão aos cargos e salários de profissionais de saúde mental negros/as e; impedem o reconhecimento das tradições de matriz africana enquanto produtoras de saúde mental em uma perspectiva ampliada de saúde. Diante de uma sociedade escravista, patriacal, misógina e LGBTfóbica a população negra busca e mantém-se (re) existindo, aquilombando, fiscalizando, ocupando espaços deliberativos, apresentando e reivindicando por mais justiça social antirracista, tendo a saúde e o cuidado em liberdade como duas expressões de lutas negras que estão contempladas nesse debate.
Isto se reflete em diversas frentes de luta e campanhas dos movimentos Negros e nas reparações históricas nas políticas públicas de ações afirmativas que o SUS, através do aumento dos Comitês Técnicos de Saúde da População Negra em todo Brasil com monitoramentos e avaliações das ações de saúde com recorte racial/gênero na obrigatoriedade dos prontuários. A 1ª Conferência Livre Nacional de Saúde Mental da População Negra: A Política de Saúde Mental como Direito e a Garantia de Atenção Integral à Saúde da População Negra foi mais um aquilombamento de nossa população negra no sentido de unir forças para enfrentar um país marcado pelo escravismo e pela colonialidade presentes até os dias atuais.
A 1ª CLNSMPN, como parte das etapas preparatórias da 5ª CNSM, ocorreu no dia 23 de setembro de 2023, de forma virtual (via Zoom) e foi transmitida pela Canal da TV Rede Unida no YouTube. O objetivo da conferência foi mobilizar a população negra para o importante debate sobre a saúde mental, considerando que as pessoas que permanentemente sofrem com as mais diversas formas de cerceamento de direitos, são as pessoas negras e na saúde mental não é diferente. Afinal, são as pessoas negras e as populações mais vulnerabilizadas as que estão recolhidas nos espaços de confinamento, prisões, e equipamentos da lógica manicomial; que mais sofrem com a segregação urbana, com os estigmas territoriais, e que tem maior exposição às diversas violências. Incidindo em níveis mais altos de vulnerabilidade social, desemprego, analfabetismo e baixo acesso aos serviços de saneamento básico e saúde.
Com inspiração na Conferência de Saúde da População Negra, ocorrida em maio de 2023, que em formato híbrido debateu a Política Nacional de Saúde da População Negra com vistas à 17ª Conferência Nacional de Saúde, a 1ª CLNSMPN contou com várias etapas para sua realização, sendo discutida, primeiramente, entre as pessoas membras do Fórum dos Direitos Humanos, Diversidade, Equidade de Raça e Gênero da Rede Unida e, comunicada sua realização à Comissão Organizadora da 5a CNSM dentro do conselho nacional de saúde (CNS) em 28 de agosto de 2023.
Com o recebimento de desejo de êxito por parte do CNS, iniciou-se intensa mobilização via a plataforma de mensagens Whatsapp com o envolvimento de pessoas participantes do Fórum e efetiva adesão e apoio de pessoas trabalhadoras da Fiocruz e do Coletivo de Entidades Negras de São Paulo. Essas parcerias foram fundamentais para a elaboração de material áudio visual, card, divulgação nas Mídias sociais e outros canais de comunicação. Foram várias reuniões, organização de grupos de trabalho (GTs), planejamento, programação, indicações de convidadas e convidados, e enfim a histórica conferência.
Resultados: A 1ª CLNSMPN obteve um total de 1.966 (mil novecentas e sessenta e seis) pessoas inscritas com preenchimento de formulário via plataforma Google Forms. No dia da Conferência foram reunidas 355 (trezentas e cinquenta e cinco) pessoas em diferentes formatos (salas do Zoom, canal do Youtube, sala on-line no Instituto de Psiquiatria da UFRJ), entre pessoas usuárias do SUS, RAPS, familiares, profissionais de saúde e de saúde mental, englobando diversas categorias sociais, acadêmicas e profissionais, gestores, estudantes, docentes, também, conselheiras e conselheiros de saúde, lideranças de movimentos sociais, religiões de matrizes africanas, quilombolas, sambistas de todos os estados brasileiros e Distrito Federal.
Foram eleitas 5 pessoas usuárias das 5 regiões do Brasil, 1 pessoa da comissão organizadora e 1 pessoa de qualquer outro segmento, todas negras e respeitando a paridade de gênero. Foram aprovadas 12 propostas e 4 diretrizes a serem defendidas pela delegação de pessoas negras do país inteiro, pela primeira vez na história do controle social. Essas propostas versaram sobre todos os eixos da 5ª CNSM e, esperamos, ajudem a transformar os cuidados em saúde mental das pessoas negras neste país pelos próximos anos.
Considerações finais: O tema da 1ª CLNSMPN foi “A Política de Saúde Mental como Direito e a Garantia de Atenção Integral à Saúde da População Negra” que trouxe para debate os impactos do racismo estrutural e institucional sobre a saúde e as incidências das desigualdades étnico-raciais que inevitavelmente prejudicam a qualidade de vida das pessoas negras e muitas vezes ocasionam óbitos precoces. Este contexto evidencia como esses fatores potencializam os malefícios que afetam a saúde mental daqueles que sofrem o racismo e a discriminação, seja no ambiente de cuidado à saúde, nos diversos equipamentos sociais, no trabalho, na comunidade e na sociedade de maneira geral.
Entendemos que se tratou de um evento histórico para a luta antimanicomial e para as políticas públicas de saúde mental, sendo a primeira vez na qual a população negra teve a possibilidade de discutir os contextos de raça/etnia como temas centrais para as proposições políticas em saúde mental. Além de histórico, tratou-se de um evento fundamental, haja vista que a população negra compõe a imensa maioria das pessoas usuárias tanto da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), quanto do Sistema Único de Saúde (SUS). Com isso, a 1ª CLNSMPN trouxe foco ao ponto fulcral do debate: o enfrentamento das situações de desigualdade originárias da escravidão e do processo colonial que suscita as iniquidades da Saúde da População Negra.