Apresentação:
No Brasil, o aborto legal é autorizado quando a gestação é concebida por ato de estupro ou quando a gestante corre risco de vida, a partir do código penal art. 128. Além disso, o aborto também é legal quando há má formação do feto (anencefalia). Nesses casos, é garantido à mulher o direito a realizar o procedimento de curetagem, que consiste no esvaziamento do útero por aspiração manual intrauterina. No entanto, apesar de ser um direito garantido por lei, realizar o aborto legal no Brasil ainda é bastante polêmico e não garante uma assistência segura e de qualidade, ocasionando um sentimento de insegurança nas mulheres que necessitam realizar este procedimento.
O Ministério da Saúde publicou a Portaria nº 2.561 de 23 de setembro de 2020, que dispõe sobre procedimentos de interrupção da gravidez no Sistema Único de Saúde (SUS) em casos previstos em lei decorrentes de violência sexual. A normativa substitui a Portaria nº 2.282, de 27 de agosto de 2020, após receber contribuições técnicas de especialistas e da sociedade sobre o assunto. Além disso, mantém a orientação para que profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde acolham as vítimas e comuniquem à autoridade policial em casos que houver indícios ou confirmação de violência sexual.
O presente trabalho tem como objetivo relatar a experiência das discentes da graduação de enfermagem durante a assistência a uma paciente que realizou o aborto legal, considerando as questões sociais e de gênero na atenção a saúde da mulher.
Desenvolvimento do trabalho:
Trabalho descritivo, de abordagem crítico-reflexiva, que relata a experiência de discentes de enfermagem durante a assistência a uma paciente que realizou aborto legal. A assistência aconteceu durante a prática supervisionada do quarto semestre, na clínica de internação de um hospital do Rio Grande do Sul. As discentes acompanharam a paciente durante dois dias consecutivos, realizando as atividades de anamnese, exame físico, verificação dos sinais vitais, prescrição e implementação de outros cuidados de acordo com as necessidades.
Resultados:
As acadêmicas prestaram assistência a uma mulher branca, jovem, que atua como profissional do sexo, foi vítima de violência sexual, o que culminou em uma gestação não desejada.
O aborto, sendo legítimo ou não, permance bastante controverso por envolver várias nuances que vão além das crenças religiosas, vertente extremamente contrária ao aborto. A ideia de que a mulher, capaz de gerar a vida, e a própria ter a autonomia sobre o seu corpo e decidir por não dar continuidade a esta vida mesmo quando esse corpo já foi violado por outro alguém, é inconcebível para muitos.
A vivência experienciada pelas discentes de enfermagem conduzem a reflexão, que perpassam questões de gênero, classe, raça e sexualidade que imperam na sociedade e não permitem que a mulher tenha o seu direito de realizar o aborto legal com humanização e segurança. Apesar dos avanços e lutas, a mulher continua enfrentando preconceitos e violência por conta do “patriarcado”. O seu gênero e condição como paciente que decidiu por realizar o aborto legal, infelizmente, a torna vítima de muitos preconceitos, julgamentos e até mesmo atos violentos pela equipe de saúde, durante e após a tomada da decisão. Como se não bastasse exercer a prostituição, sua classe social a torna ainda mais vulnerável. Estudos identificaram que o aborto legal é realizado, principalmente, por mulheres com maior status socioeconômico e por mulheres que se autodeclaram brancas, o que instiga a refletir se o direito a realizar o aborto legal realmente chega para mulheres negras e de baixa renda, que são estatisticamente, o grupo que mais sofre violência sexual. Ademais, em pesquisa realizada por uma rede de mulheres latino-americanas e do caribe que trabalham com o sexo, conclui que por conta do estigma com a profissão, a maioria delas não procuram atendimento em hospitais ou serviços de saúde para não revelar a sua atividade laboral.
Percebeu-se, a partir do comportamento dos membros da equipe, que a privacidade e o sigilo sobre o caso da paciente e sua vida íntima, haviam sido dissipados, gerando um sentimento de frustração e revolta, não só pela paciente, como também nas acadêmicas de enfermagem. De acordo com o artigo 52 do código de ética de enfermagem: “o profissional de enfermagem tem o dever de manter sigilo sobre fato de que tenha conhecimento em razão da atividade profissional”.
Nesse ínterim, a comunicação efetiva e ética é a chave na área da saúde e deve ser bilateral para que seja possível entender, através da visão do paciente, como ele se sente em seu processo de internação e, a partir dos diagnósticos de enfermagem, traçar as intervenções mais satisfatórias para lidar com as diferentes necessidades humanas básicas. Contudo, a partir dessas observações, se instaurou um desafio complexo em relação à prestação de cuidados, uma vez que os sentimentos gerados nas acadêmicas e na paciente durante essa situação produziu barreiras que impactaram diretamente na comunicação e na criação de vínculos entre as partes, causando desconforto e prejudicando a assistência de enfermagem.
É considerado prioridade para a equipe de saúde garantir o direito da mulher vítima de violência sexual, o acesso à informação e assistência humanizada e solidária. Apesar dos esforços das autoridades, identifica-se que o atendimento a estas mulheres é marcado por julgamentos e negligência. Tal negligência pode expandir os sentimentos de tristeza, desespero e desamparo já relacionados ao procedimento, uma vez que afeta o processo de internação que, por si só, já abrange toda uma mudança na saúde e nos hábitos dos pacientes. Além disso, toda a problemática relacionada ao gênero e classe torna o processo de internação desconfortável, o que impacta significativamente o aprendizado das discentes que realizam a prática supervisionada por apresentarem insegurança ao adentrar nesses contextos e a buscar intervenções com a equipe de saúde.
Por esse motivo, é incentivado que, na graduação e após a formação, por meio da educação permanente, haja momentos que sejam destinados à discussão dessas temáticas, com a finalidade de aprimorar a prestação de serviços de forma humanizada, ou seja, que envolva atendimentos de alta qualidade, criando vínculo entre o usuário e o profissional, oferecendo uma atmosfera acolhedora garantida por lei. Sendo assim, este dispositivo contribui para a humanização do ambiente hospitalar, proporcionando conforto aos pacientes que enfrentam momentos adversos, que, por vezes, resultam em uma variedade de sentimentos distintos, o que pode impactar negativamente o processo de internação.
Considerações finais:
Esse acompanhamento possibilitou uma identificação da realidade do processo de internação e dos impactos negativos associados às questões de gênero, classe e sexualidade, uma vez que foi possível perceber o quanto esses aspectos influenciam o comportamento dos profissionais de saúde durante a assistência de mulheres que exigem a garantia do seu direito.
Nesse contexto, constatou-se que os profissionais e discentes necessitam de melhor preparo ao lidar com situações semelhantes, apontando fragilidades durante o processo de formação e na educação permanente em questões como as descritas, reforçando a justificativa deste trabalho. Assim, vale ressaltar o incentivo a estudos e discussões sobre a temática do aborto legal, visto que, a partir deles, poderão ser identificadas uma melhor abordagem, tendo em mente toda a bagagem social que o tema carrega. Assim, almeja-se o acolhimento de forma humanizada, sem preconceitos e com ênfase no bem-estar físico, social e mental do paciente.