Introdução
O Sistema Único de Saúde (SUS) possui princípios para garantir o acesso universal, equânime e integral do usuário. É organizado em Redes de Atenção à Saúde (RAS) que articulam os níveis de atenção primária, secundária e terciária. A atenção básica constitui a porta preferencial de entrada da RAS e a atenção terciária compõe o conjunto de terapias e procedimentos que caracterizam alta complexidade.
Devido ao aumento da expectativa de vida mundial, ocorreu uma mudança no quadro epidemiológico, com redução de pessoas com doenças infectocontagiosas e aumento de pessoas com doenças crônicas não transmissíveis (DCNT). As doenças crônicas possuem origem multifatorial, geralmente aparecem de forma gradual, exibem um curso clínico longo com períodos de crises agudas, o que gera prognósticos usualmente incertos e exigem procedimentos de cuidado multiprofissional ininterruptos em redes de atenção.
A saúde bucal de pacientes internados por complicações de DCNT apresenta características relativas ao autocuidado e a condição bucal do indivíduo antes da internação, além de repercussões das alterações metabólicas e funcionais decorrentes da doença de base e dos efeitos colaterais de medicamentos. Assim, a integração do cirurgião dentista no ambiente hospitalar proporciona atendimento integral ao paciente, já que as condições de saúde bucal estão fortemente associadas com condições de saúde sistêmicas.
Dessa forma, as necessidades de tratamento odontológico identificadas durante a internação, se não solucionadas enquanto o paciente estiver hospitalizado, devem ser encaminhadas para continuidade do tratamento no período pós-alta. Além disso, o acompanhamento odontológico para manutenção periódica preventiva contribui para evitar novas complicações do quadro sistêmico e reinternações em pacientes com doenças crônico-degenerativas.
A partir da análise do processo de Gestão de Alta Hospitalar, foi identificada a ausência de registros específicos quanto aos encaminhamentos odontológicos de pacientes com doenças crônico-degenerativas ao final do período de internação. Com isso, esse trabalho objetivou desenvolver e implantar um formulário de encaminhamento odontológico padronizado para acompanhamento desses pacientes após a alta hospitalar.
Metodologia
O estudo de caráter descritivo é apresentado na forma de relato de experiência, desenvolvido em 2021. Versa sobre o cuidado odontológico prestado aos pacientes com doenças crônico-degenerativas internados no Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM) e sobre a criação de um formulário de encaminhamento odontológico para referenciar esses pacientes após a alta hospitalar.
Para a transferência de cuidados em saúde bucal de forma adequada no processo de alta hospitalar, houve necessidade de desenvolver e padronizar um formulário de avaliação odontológica e encaminhamento pós-alta hospitalar. O documento deveria conter dados e informações sobre os pacientes e sobre os procedimentos realizados durante a internação, a fim de guiar os pacientes e os profissionais de saúde dos serviços acerca da condição de saúde bucal e as principais necessidades de tratamento e acompanhamento odontológico.
O formulário foi elaborado pela Cirurgiã Dentista residente do segundo ano do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde do Adulto com ênfase em Doenças Crônico-Degenerativas da Universidade Federal de Santa Maria. Os itens foram discutidos com os demais profissionais do núcleo de Odontologia Hospitalar, sendo dois preceptores e uma residente do primeiro ano de mesma ênfase. A aplicabilidade do instrumento foi testada com 3 pacientes, escolhidos aleatoriamente, em dias alternados, a fim de realizar adequações necessárias.
A testagem do formulário foi realizada junto ao leito do paciente. Foram coletadas informações dos pacientes por meio de uma anamnese e realizado um exame visual da cavidade bucal por meio de espelho bucal e espátula de madeira, com auxílio de luz natural ou lanterna.
Resultados
O formulário desenvolvido apresenta a identificação do paciente, dados clínicos e hospitalares gerais como: o motivo e o tempo da internação, as medicações em uso e as comorbidades apresentadas. Também descreve a avaliação da saúde bucal, os procedimentos odontológicos realizados durante a internação e as principais necessidades após a alta, além da identificação do serviço de saúde de referência na atenção primária (APS) para estes pacientes.
Através do exame bucal dos pacientes, foi possível detectar a presença de cavidades de cárie e alterações na coroa dos dentes, alterações gengivais, presença de cálculo dentário, mobilidade dentária, ausência de dentes, uso ou necessidade de uso de próteses dentárias, lesões na mucosa bucal e na face. Alguns desses pacientes puderam receber atendimento inicial às suas necessidades odontológicas. Porém, no ambiente hospitalar, sempre é preciso discutir com toda a equipe médica e assistencial sobre qual o melhor momento para intervenção odontológica, levando em consideração os riscos e benefícios ao quadro geral.
O formulário é conciso, objetivo e de fácil aplicabilidade ao ambiente hospitalar, bem como de fácil compreensão para o profissional que o recebe. Dessa maneira, pode ser entregue ao paciente juntamente com o sumário de alta e os mesmos dados também podem ser registrados na evolução odontológica que consta no prontuário eletrônico do hospital. No formulário consta um e-mail para contato com o profissional que avaliou o paciente no hospital.
O uso do documento mostra-se uma forma simples e eficaz de comunicação entre os serviços de saúde bucal na RAS. A experiência trouxe a possibilidade de ampliar a abordagem multiprofissional em relação ao bem-estar do paciente. A construção de pontes entre a atenção terciária e atenção primária deve ser implementada e consolidada de forma a garantir a continuidade do cuidado, com benefícios tanto para o usuário como para os serviços de atenção em saúde.
Considerações Finais
O planejamento odontológico da alta do paciente possibilita um adequado seguimento do cuidado em saúde bucal de pessoas com DCNT. Uma limitação encontrada durante o desenvolvimento desse trabalho foi o fato do formulário ser entregue ao próprio paciente, dependendo da sua vontade e de suas condições para buscar ou não o serviço de saúde bucal em seu município de origem e em sua Unidade Básica de referência. Entretanto, os pacientes devem ser estimulados e encorajados a buscar o atendimento por meio da conscientização de que sua saúde bucal tem repercussões importantes em sua saúde sistêmica, visto que o autocuidado é fundamental para o controle de ambas as condições.
Devido ao curto período para a elaboração e aplicação do formulário, foram realizados apenas testes para tornar o formulário objetivo e de fácil aplicabilidade. É necessário estabelecer contato com a atenção básica para discutir os feedbacks relacionados à validação do documento e discutir possíveis mudanças, visando uma construção conjunta.
Esse estudo colabora para potencializar a aproximação da atenção terciária com os demais pontos da RAS, qualificando os serviços de saúde com foco diretamente nas necessidades do usuário. Além disso, a gestão de alta multiprofissional pode trazer benefícios ao sistema de saúde como um todo, pois, ao aprimorar a comunicação entre as equipes de assistência ao paciente nos diferentes níveis de atenção à saúde, pode-se prevenir novas complicações que levam a reinternação. Fica evidente a importância da construção de um plano terapêutico integral que associe os cuidados recebidos na atenção terciária com a continuidade do cuidado após a alta hospitalar.