Apresentação; A teoria crip se trata de uma teoria que se desenvolve a partir dos estudos sobre deficiência, emaranhada pela teoria queer, na qual a discussão sobre corponormatividade (able-bodieness), se relaciona com a história de como as pessoas com deficiência foram ao longo do tempo toleradas e constrangidas a certos espaços, de maneira que reivindica um outro mundo possível. Desenvolvimento do trabalho; Este estudo foi desenvolvido a partir de uma tese de doutorado, que faz parte de um projeto maior, “Análise dos novos movimentos sociais e a produção de saúde na periferia da região metropolitana de Londrina (PR)”, que foi produzida segundo uma proposta cartográfica. O trabalho de campo dessa pesquisa foi realizado durante o período de agosto de 2021 a janeiro de 2022. Resultados; A partir das discussões levantadas durante o processamento de campo e construção cartográfica a partir do pesquisador autista em um Consultório na Rua (CnaR), elaborou-se um fio de discussão a partir da dobra campo pesquisador-deficiente e campo CnaR, desenvolvendo-se assim a problematização teórica a partir das aproximações que a teoria crip realiza com a saúde coletiva. Discussão: A concepção de saúde adotada por órgãos internacionais e referenciada pelo Brasil em suas políticas públicas, fundamenta-se no conceito de bem-estar biopsicossocial. Contudo, ao aprofundarmos essa discussão, surgem questionamentos sobre o significado de bem-estar e a extensão do biopsicossocial, o que levanta reflexões sobre as intenções e sentidos atribuídos a cada componente dessa definição. Embora essa visão de saúde amplie a abordagem biomédica do século XX, é importante considerar o contexto em que ela está inserida. Essa concepção não se opõe aos movimentos em prol dos direitos humanos ou da acessibilidade. No entanto, como todo discurso inserido socialmente, ela carrega consigo relações de poder que influenciam sua disseminação e sentidos possíveis. Um exemplo possível, trazido por Robert McRuer em seu livro Crip Theory: cultural signs of queerness and disabilty, de 2006, exemplifica como movimentos de defesa dos direitos das pessoas com deficiência (PcD), têm revisitado questões importantes, trazendo exemplos desde eventos como o encontro em Mumbai em 2002 do fórum social mundial, no qual ativistas destacaram as fragilidades das práticas capacitistas presentes na organização do evento progressistas, ou mesmo o desejo moralista de associações que buscam a propagação do “bom deficiente” em suas mídias, em um paralelo à construção do “bom gay”, também em outras mídias. A teoria crip, derivada do termo inglês "crip" (aleijado), surge como uma abordagem inspirada na teoria queer, buscando questionar e propor novos paradigmas para uma sociedade acessível. Enquanto a definição de bem-estar biopsicossocial parece inclusiva, estudos sobre deficiência problematizam como as questões de saúde ainda continuam fundamentadas em uma corponormatividade compulsória, na qual um corpo considerado "normal" e "hétero" e “funcional” é idealizado, enquanto corpos que se desviam e distanciam desta norma são marginalizados e medicalizados. É uma concepção de combinações de opressões que podem se internacionalizar e sobrepor de inúmeros modos, que varia conforme a pessoa é racializada, sua etnia, entre outros, de modo que a pessoa não se “encaixa” em nenhum lugar, nem mesmo em sua cultura, pois é vista como uma ameaça, ou infecção àquela norma. Pontos levantados pela teoria crip, não apenas tratam da deficiência, mas jogam luz de como estas foram sendo concebidas e materializadas em diferentes culturas e espaços, sendo homogeneizadas e fixadas de acordo com termos e linguagem especializadas, entre elas, a médica. Nesta normatividade, muitas vezes, quem não possui deficiência não consegue compreender o privilégio de estar na norma, e mesmo que o reconheçam, tal privilégio não desaparecerá apenas por tal ato. Esta discussão, não se dá ausente de sua relação com o capitalismo e a racionalidade neoliberal, isto, pois, estes irão buscar cooptar a questão e trazê-la como corpos domesticados, onde a pontos como a construção de lares, famílias e identidades são colocadas como questões individuais, enquanto as produções coletivas que mantém o funcionamento da corponormatividade compulsória continuam definindo os espaços em que as deficiências são aceitas. Isto restringe o pensamento de deficiência e sua relação com esta como uma esfera exclusivamente individual, enquanto os espaços “públicos” se mantém apenas tolerantes às dissidências. Para as PcD`s isto foi sendo disseminado conforme as práticas de exclusão mantidas ao longo do tempo, como institucionalizações e afastamentos da família. Isto ocorre, pois a própria casa, especialmente após o início do século XX é pensada de um modo funcional para aqueles corpos normatizados, de modo que, quando há uma PcD neste espaço, ela ameaça o local com sua presença, pois o hostiliza com seu corpo. Tais contribuições da teoria crip perpassam toda a cartografia vivenciada no CnaR, seja pelo campo do território existencial do pesquisador que por ser uma PcD na qual sua deficiência está, em parte, naquilo que é compreendido como relações sociais. Tal ponto se dá no próprio modo de funcionar do ambiente de trabalho, pois para a normatividade compulsória, as relações que devem ser estabelecidas, bem como as compreensões de afetos e vivência de mundo consideradas normais, não estão condizentes com a própria existência do pesquisador a partir do autismo, o que também reflete na própria produção científica quando esta espera uma “espécie” de pesquisador ideal que vai a campo. Nesta dobra, a partir dos encontros, tanto com trabalhadores do CnaR e com pessoas em situação de rua (PSR), a deficiência emergia como questão constante, sejam elas de ordem física, intelectual ou outras possíveis, de maneira que a rede de saúde pensada para estas pessoas, muitas vezes só estava disponível pelo serviço oferecido pelo CnaR, o qual buscava acionar outros pontos da rede. Contudo, as deficiências das Pessoas em Situação de Rua (PSR) apareciam como outro ponto de dissidência do normatizado. Apesar da deficiência estar constantemente presente, ela aparecia como algo acessório em muitas discussões e seguimentos, sendo muitas vezes tolerada pela rede de saúde, que buscava apenas mitigar questões mais debatidas, e aceitas socialmente, como rampas ou algumas adaptações em Braile, ou áudio, por exemplo. Contudo, a discussão que se coloca aqui, do ponto de vista da teoria crip, é que o mundo acessível que deve ser buscado, é um mundo não compõe com o neoliberalismo, pois as causas são coletivas, e que se, nas relações e funcionamentos de equipamentos e serviços disponíveis precisem ser totalmente refeitos ou destruídos para que as PcD, e outros crips dissidentes possíveis no mundo, estejam presentes, que assim seja. Considerações finais; A acessibilidade está na própria questão cultural de como a deficiência é concebida, onde ela não é algo a ser conjurado e tolerado, mas sim, que seja pensada e debatida distante das normatizações, homogeneizações e moralizações, mas sim, pelas relações. Deste modo, é fundamental reconhecer e desafiar as normas sociais que perpetuam essa racionalidade neoliberal, que favorece apenas um ideal de corpo humano. A teoria crip oferece uma perspectiva para repensar e reconstruir um mundo verdadeiramente acessível para todos.