Apresentação: No desenvolvimento de uma pesquisa, é possível ser seduzido por um mito construído em torno da ideia de um pesquisador neutro. Esta concepção de neutralidade, que supostamente seria mantida pelo pesquisador em relação ao seu “objeto” de estudo, foi considerada hegemônica e normatizada, especialmente após o desenvolvimento de teorias derivadas do positivismo científico que se desenrolaram desde o século XIX, deixando vestígios até os dias atuais. Em busca de novas epistemologias que forneçam novas ferramentas para a produção de conhecimento, diversos autores discutiram criticamente e propuseram novas maneiras de conduzir pesquisas. Entre esses autores, encontram-se Gilles Deleuze (1925 - 1995) e Félix Guattari (1930 - 1992), que em seu sistema filosófico, construíram um arcabouço teórico que, a partir da imanência, reconhece a indissociabilidade do sujeito do contexto temporal e espacial em que ele está situado, e expõem como ambos se produzem à medida que se relacionam. Assim, este resumo busca apresentar uma problematização sobre o pesquisador e sua relação com o que é reconhecido como campo de pesquisa. Desenvolvimento do trabalho; Este estudo foi desenvolvido a partir de uma problematização decorrente de uma tese de doutorado, inserida em um projeto maior intitulado “Análise dos novos movimentos sociais e a produção de saúde na periferia da região metropolitana de Londrina (PR)”. A pesquisa foi realizada seguindo uma proposta cartográfica, com vivência em um Consultório na Rua (CnaR). A cartografia é um método de produção de conhecimento que busca, a partir dos encontros decorrentes das vivências, criar mapas que expressem as linhas de desejo da afetação do pesquisador. Para o apoio e realização da pesquisa, foram utilizadas ferramentas como o diário cartográfico, vivências no serviço de saúde e o processamento das vivências no grupo de pesquisa. O trabalho de campo desta pesquisa foi realizado durante o período de agosto de 2021 a janeiro de 2022, após aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos. Resultados; O “campo” da pesquisa não está fixado apenas em um espaço e tempo delimitados pelo pesquisador onde ele irá atuar, pois é um território no qual as relações entre os seres vivos ocorrem, onde a ação se efetiva, redes são constituídas e a vida acontece. Desta forma, ao teorizar e delimitar um campo para uma pesquisa, é necessário considerar que, com essa criação, também se cria uma sombra de outros territórios descartados em detrimento e, entre eles, um que não pode ser desconsiderado, o território existencial do pesquisador. Diante da ansiedade necessária que precede uma entrada no que formalmente se denomina “campo” de pesquisa, o cartógrafo que seguia para a vivência, munido da ferramenta do diário cartográfico, iniciou as anotações antes mesmo desta entrada. Tal possibilidade de “queimar a largada” do que seriam anotações de um possível campo começaram a ser problematizadas por aquilo mesmo que se entende por “entrar em um campo” e a possível universalização que tal termo pode possuir. Isto porque, no estudo em questão, o pesquisador já havia tido contato com o mesmo CnaR em sua pesquisa de mestrado, já conhecia a equipe e de modo recíproco a equipe já o conhecia, no entanto, não eram nem o mesmo CnaR, nem o mesmo pesquisador. Se considerarmos a defesa do filósofo pré-socrático Heráclito de Éfeso (500 a.C. - 450 a.C.), do mundo como eterno devir, ou seja, não se pode banhar-se duas vezes no mesmo rio, também não se pode entrar duas vezes no mesmo campo. Além da equipe, ter havido mudanças em alguns de seus funcionários e local de trabalho, mesmo se estes tivessem se mantido, eles não seriam os mesmos. O pesquisador traz consigo, ao longo de toda a sua vida, experiências, expectativas, medos e formas de se relacionar com o mundo. Esses aspectos não podem ser desconsiderados na pesquisa. No entanto, mesmo quando levados em consideração, essas questões não podem ser totalmente expressas nos produtos derivados da pesquisa, como teses, relatórios ou artigos, seja por falta de espaço ou pela impossibilidade de expressar completamente essa vivência. À medida que a cartografia foi sendo elaborada e as discussões foram surgindo, tanto em processamentos no grupo de pesquisa quanto em orientações, emergiu o reconhecimento de que o que se considerava como campo parecia ter surgido muito antes da própria entrada e continuou após a saída da vivência. Isso ocorre porque, embora a vivência ocorra em um determinado período temporal, as afetações decorrentes desses encontros não respeitam o tempo estipulado pelo pesquisador, aparecendo e sendo constantemente reelaboradas. Diante dessa consideração, o desafio foi como tornar esse processo transparente para o leitor da pesquisa, uma vez que são realizadas análises tanto de um campo espacial, como o CnaR, quanto de um campo corporal, como o do pesquisador. Essa análise voltada para o pesquisador é característica da cartografia, na qual a indissociabilidade é parte essencial de sua produção, portanto, também é uma autoanálise. Considerações finais: Esta exposição demonstra que o campo é uma arbitrariedade necessária, construída para a pesquisa, mas que também existe intrinsecamente um campo com o corpo do próprio pesquisador que causará uma interferência em seu encontro com o campo escolhido. Esse ponto está em consonância com as elaborações do filósofo da ciência Paul Feyerabend (1924 - 1994), que argumenta que não há um método científico universal, visto que, a cada pesquisador, a cada entrada, serão reconfigurados possíveis campos, e suas entradas, movimentos e ações dependerão dos encontros que ocorrerão. Com esse reconhecimento do campo que se dobra sobre o pesquisador, como uma fita de Möbius, busca-se lançar luz sobre como o campo, que parece ser algo externo a toda pesquisa, na verdade, faz parte de um contínuo que se dobra sobre o próprio território do pesquisador. Isso precisa ser considerado em todas as partes da pesquisa, seja no planejamento, visitas e vivências ou mesmo na análise e elaboração de relatórios, visto que o próprio campo subjetivo do pesquisador está sempre presente e se relacionando com a análise realizada.