O crescente desenvolvimento do capitalismo, a aceleração dos processos de industrialização e urbanização e a hegemonia liberal representam a nova ordem mundial. Essas mudanças produzem como efeito o aumento das desigualdades sociais e consequentemente a exclusão social. Nesse processo, uma parcela da população foi excluída do acesso ao trabalho, aos bens e serviços em nossa sociedade, o que teve como consequência o aumento significativo das pessoas em situação de rua e da vulnerabilidade social. O objetivo do trabalho foi realizar uma cartografia da produção do cuidado da população em situação de rua num município de grande porte do sul do país. Foi realizado um estudo qualitativo por meio da utilização do método cartográfico. A cartografia se trata de uma metodologia de pesquisa nova. Diferentemente das pesquisas qualitativas tradicionais a cartografia não tem uma forma, um passo a passo ou uma receita a ser seguida, ela se constitui a partir dos movimentos e momentos experienciados. O método cartográfico pressupõe que o cartógrafo mergulhe nas vivências e nos cenários os quais está observando e pesquisando, assim promove uma mistura de sujeito e objeto. O cartógrafo deixa-se afetar pelos possíveis encontros e busca captar o movimento, processos, formas de produção da vida e a vida em produção. Era manhã de uma segunda-feira, fui até a Unidade Básica de Saúde (UBS) onde o Consultório na Rua (Cnar) fica alocado. Após realizarmos algumas abordagens, decidimos ir até a região central da cidade, onde fica localizada uma área de lazer, neste espaço são realizadas manifestações artísticas, culturais e esportivas. Era por volta das nove horas da manhã, estávamos descendo as escadarias desta área de lazer, quando me deparo com um cobertor cinza e azul e os pés descalços para fora. Iniciei falando bom dia, ele desesperado se levantou correndo. Questionei o motivo do desespero, já explicando que era enfermeira e estava acompanhando o consultório na rua. Ele respondeu que acreditava que éramos da polícia por conta da cor do uniforme que utilizamos no momento (azul), mesma cor da Guarda Municipal do município. Perguntei seu nome e obtive seu apelido da rua como resposta, eu estava falando com o Fumaça. Me gerou estranheza esse nome e perguntei se ele precisava de alguma coisa, a resposta foi curta e grossa, não. Tentei mudar um pouco minha abordagem e perguntei se ele precisava de algo relacionado a sua saúde, a partir deste momento percebo que ele fica disponível para uma conversa comigo. Fumaça me conta que foi atropelado por uma moto e precisou realizar um procedimento cirúrgico em seu tornozelo, porém não realizou o repouso necessário e continuou apresentando uma lesão em seu pé e sentindo muita dor. Perguntei se poderia observar sua lesão e realizar o curativo, me sento ao seu lado, ele esticou sua perna sobre a minha e então começo a realizar o curativo, percebo uma vinculação neste momento. Fumaça começa a me contar algumas histórias sobre o seu viver na rua. O vínculo implica em relações de confiança e afetividade mútua entre duas pessoas, além do conhecimento das histórias de vida dos usuários. Esse tipo de relacionamento pautado nos encontros e na criação de vínculo melhora o conhecimento acerca dos reais problemas apresentados por aqueles usuários. Nesse momento ele relata como é difícil viver em grupo na rua, existem desavenças, brigas e roubos entre os viventes da rua e que por isso acredita ser melhor viver sozinho para evitar conflitos. À medida que vamos nos sentindo mais vinculados ele vai relatando questões mais íntimas e de repente me pega de surpresa falando que a rua havia o deixado mal...disse que parece não ter mais sentimentos, relatou que se for necessário machucar ou matar alguém para sobreviver ele fará isso. Isso foi muito forte e me peguei pensando nisso por semanas... O que é ser mal? A rua deixa mesmo as pessoas más? No momento em que vivi essa cena nesse processo cartográfico, será que em um cenário de exclusão social e pandemia acionar os dispositivos de saúde para produzir formas de sobrevivência é realmente ser mal? Será que quando ele falou de matar alguém ele estava falando sério? A partir deste nosso encontro me desconstruí, me senti desterritorializada por ouvir todas aquelas histórias. O processo de desterritorialização se trata de estar aberto e mergulhar num processo contínuo de abandonar o território e o que é previamente instituído, nos levando a considerar novas formas de existência. Me negava a compreender o Fumaça como uma pessoa má. Acredito que vivemos em um mundo tão excludente que os agenciamentos e as marcas vão construindo esse sentimento em nós, de que vamos nos tornando pessoas más, este processo é chamado de subjetividade. A subjetividade é produzida por relações transversais, esta produção não ocorre a partir da determinação de uma instância dominante ou de uma relação hierarquizada. Diante disso, compreende-se a subjetividade como um processo pautado na tese de que somos uma multiplicidade. Nega a existência de um eu centrado, devido a influência de dispositivos sócio-econômico-cultural. Fui percebendo as astúcias e táticas de vida e sobrevivência criadas pela população em situação de rua. Para sua sobrevivência eles criam estas táticas para driblar as proibições e os limites instituídos pela sociedade, ressignificam objetos, lugares e assim produzem linhas de fuga. O homem e o mundo se encontram em constante movimento de construção e desconstrução a partir de diferentes linhas, planos e segmentos. O ser humano é um animal segmentado, ou seja, pode ser dividido entre os estratos que o compõem, parte biológica, social, política e afetiva. Somos segmentados por linhas que podem ser divididas em: dura, flexível e linhas de fuga. O homem é composto por esse emaranhado de linhas, que coexistem e se transformam, resultando em uma complexa relação entre elas na produção da sociedade, grupos e pessoas. As linhas duras são configuradas partindo do princípio da binaridade. Neste conjunto de linhas o que opera é o instituído e o processo de re-territorialização. Já as linhas flexíveis são pautadas a partir dos fluxos de intensidade, dos deslocamentos, da desterritorialização. Nesse emaranhado, o encontro entre as linhas duras e flexíveis formam a configuração de uma nova linha, composta pelas linhas de fuga. Essa nova composição produz um plano de invenção, traz consigo toda a subjetividade, ela é a rachadura do instituído, a saída do dualismo e fabricante de todos os movimentos de desterritorialização. Desde a era pré-histórica o homem é um ser segmentado, o que varia é a forma como as linhas atuam e se articulam na vida dos indivíduos. Na população em situação de rua ser flexível e produzir linhas de fuga é a forma de sobreviver. “As linhas de fuga- não será isso o mais difícil? Certos grupos, certas pessoas não as têm e não as terão jamais”. Esta cartografia produziu um mapa sobre os diversos encontros e afetos com a população em situação de rua. A produção de cuidado para a população em situação de rua, vai muito além do tratamento do corpo biológico. Nesse processo de cuidar dessas pessoas se faz necessário a criação de vínculo dos profissionais de saúde pautado na necessidade de considerá-los interlocutores válidos, pois caso contrário, o vínculo poderá não acontecer.