O extermínio dos excluídos: uma cartografia da população em situação de rua.

  • Author
  • Maria Eduarda Romanin Seti
  • Co-authors
  • Gabriel Pinheiro Elias , Luiz Gustavo Duarte , Stela Mari dos Santos , Maira Sayuri Sakay Bortoletto
  • Abstract
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    São múltiplos os determinantes que levam a população a se encontrar em situação de rua, entre elas destacam-se: situação de pobreza, desemprego, ruptura dos vínculos familiares e das redes de apoio, migração, entre outros.

    A população em situação de rua é vista pela sociedade como pessoas perigosas, considerados vagabundas, rueiras, marginais, loucas, entre outras formas repletas de preconceito. Observa-se, assim, a existência de representações sociais pejorativas em relação à população em situação de rua.

    Estas representações acerca da população em situação de rua reforçam a construção de uma identidade articulada a valores negativos. Desta maneira reproduzem e cristalizam relações concretas de dominação e violência.

    O objetivo do trabalho foi realizar uma cartografia da produção do cuidado da população em situação de rua num município de grande porte do sul do país.

    Foi realizado um estudo qualitativo por meio da utilização do método cartográfico. A cartografia é produzida em ato, levando o pesquisador a transitar por diversos “mundos” ou ainda inventar novos mundos de cuidado. Não se trata de uma pesquisa onde existe a coleta de dados, a cartografia é pautada nos encontros e nas experiências.

    Compreendo que a população em situação de rua traz consigo marcas de discriminação, preconceito e violência. São vítimas da invisibilidade social, se tornam alvos de comportamentos discriminatórios e arbitrários. Essas pessoas incomodam. A sociedade se incomoda em ver pessoas passando fome, que não tem lugar para dormir, que estão tristes e deprimidos, muitas vezes sujos e lesionados. A população não compreende as causas que determinam o estar na situação de rua e muitas vezes são orientadas pelo higienismo social.

    São diversos os motivos que levam uma pessoa a experienciar a situação de rua, são um grupo social heterogêneo, encontrado no mundo como um todo. Constituem um grupo sem acesso a direitos básicos, na maioria das vezes sem acesso a políticas e serviços sociais. Esta população tende a ser invisibilizada pelo Estado e pela sociedade. A população em situação de rua só é visível quando se torna um incômodo, levando muitas vezes a ações violentas do poder público.

    Um dos exemplos de ações violentas do poder público se trata do desfinanciamento de políticas públicas ou da não implementação de políticas públicas. O congelamento de investimentos em saúde, educação e proteção social por 20 anos, através da EC 95, somado a pandemia do COVID-19 se tornam exemplos destas ações.

    A falta de políticas públicas se trata também de uma forma de decidir as vidas que valem a pena viver e as que devem ser deixadas morrer. A fim de discutir essa temática trago alguns interlocutores que ofertam alguns conceitos necrobiopoder/necropolítica.

    Para compreender o conceito de necropolítica irei abordar inicialmente mecanismos e tecnologias de poder e suas transições entre poder soberano, disciplina e o biopoder, apontadas por Foucault.  

    A soberania corresponde a uma forma de poder totalizante, onde o soberano tem poder sobre a vida e a morte, em outras palavras o poder soberano decide sobre a vida e morte dos outros.

    No século XVII e início do XVII, surgem diferentes técnicas de poder. O poder se incide sobre os corpos individuais em suas práticas cotidianas, por meio de diferentes técnicas e é exercida por procedimentos de organização, distribuição, vigilância, organizadas em espaços institucionais como prisões, escolas, quartéis. Esses procedimentos se traduzem como poder disciplinar.

    O poder disciplinar consiste em fazer do corpo uma máquina de produção, por meio de normas e proibições. Ou seja, interessa a disciplina o corpo vivo e que produza cada vez mais. “O poder disciplinar, então, não é um poder de morte, mas um poder de vida, cuja função não é matar, mas operar a imposição da vida”. Seu objetivo é a produção de corpos dóceis, capaz de se tornarem mercadoria na sociedade de classes.  

    Durante a segunda metade do século XVIII, o foco de Foucault deixa de ser a disciplina e passa a ser o biopoder e a biopolítica das populações. O biopoder tem como objeto os processos específicos e individuais da própria vida, como a morte, reprodução e a vida. Já a biopolítica, se trata de um conjunto de estratégias de gestão da população e do corpo social, relacionando-se com mecanismos próprios da medicina e da estatística, através da higiene pública, da normalização do saber, da medicalização da população e da doença como fenômeno populacional.

    A biopolítica tem como objetivo a regulação da população como um corpo político, ou seja, se trata de um assassinato indireto, a população morre em consequência do Estado não fazer nada para ajudá-las. Seguindo uma hierarquia de raças, quem se encontra na parte inferior é abandonado para morrer.

    Populações que ameaçam a sobrevivência da maioria por suas características singulares são abandonadas para morrer, decorrente da não existência de políticas públicas e tecnologias que atendam suas demandas.

    Alguns teóricos das regiões da África, América Latina e Europa Oriental trazem à tona que o biopoder não funciona da mesma forma em todos os lugares, principalmente em países de terceiro mundo, onde o objetivo não se trata apenas da regulação da vida, mas sim da morte.

    A fim de demarcar os conceitos, biopoder refere-se a regulação da vida e o necropoder se trata da regulação da morte, no entanto, isto não significa que os conceitos sejam opostos.

    O conceito necropolítica se trata de uma reflexão sobre a relação entre a biopolítica e a necropolítica, dar a vida e promover a morte, este conceito é discutido por Archille Mbembe (2016). O teórico africano destaca que apenas a biopolítica não é capaz de compreender o cenário vivido em países de terceiro mundo, onde a vida é subordinada ao poder da morte.

    Berenice Bento, socióloga brasileira, aborda o tema da necropolítica no cenário brasileiro. Na história do Brasil, este conceito se torna mais evidente “dar a vida e dar a morte”, a partir disso ocorre uma distanciação do pensamento de Foucault, onde o Estado traz consigo o fundamento de “fazer viver, deixar morrer”.“Deixar morrer”, supõe que o Estado não desenvolverá políticas de morte, porém torna-se evidente a existência de políticas de fazer morrer no Brasil.

    Para que exista governabilidade são produzidas também zonas de morte, existe uma dependência entre governabilidade e poder. Algumas vidas nascem para viver e outras se tornam matáveis pelo Estado.

    Esta cartografia produziu um mapa sobre os diversos encontros e afetos com a população em situação de rua. Para sobreviver na rua se faz necessário utilizar artimanhas e “malandragens” para driblar as inúmeras violências a que estão expostos a todo momento. Desta maneira constroem linhas de fuga. 

    A população em situação de rua é sim uma potência, esta população se reinventa cotidianamente a fim de produzir cuidado para si, não seguem rotas definidas, sua orientação está pautada em locais já conhecidos que possam formar uma rede de cuidado para sua sobrevivência física e emocional.

     

  • Keywords
  • População em Situação de Rua; Cartografia; Necropolítica.
  • Subject Area
  • EIXO 1 – Educação
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