A experiência de produzir cuidado COM, e não para o outro

  • Author
  • LETICIA LOURENCO
  • Co-authors
  • Aline Azevedo Vidal , Karla Santa Cruz Coelho
  • Abstract
  • Esta narrativa relata um encontro que se dá no dispositivo de uma Unidade Básica de Saúde (UBS). Para localizar o leitor é importante dizer que a UBS em questão fica à margem da Avenida Brasil, uma das principais vias da cidade do Rio de Janeiro, mais precisamente “na altura” da Maré. Essa mesma: a Maré de Marielle. Costumo dizer que a Maré possui “várias Marés” que juntas formam o Bairro, criado pela lei municipal em 1994. Isso porque, dentro deste território há 16 favelas, dentre elas o Parque União, que é o cenário deste encontro. A unidade de saúde  desempenha seus serviços a partir da carteira de serviços da Secretaria Municipal do Rio de Janeiro, e está organizada em seis equipes, sendo responsável pelo atendimento de cerca de 20 mil pessoas que moram em casas e kitnets. É no Parque União, ou “PU”, para os mais íntimos, que acontece o baile da comunidade, às margens da avenida Brasil. Do outro lado da pista de carros, há um viaduto cinza, e embaixo dele uma arquitetura hostil. Para quem não sabe, arquitetura hostil corresponde a pedras pontiagudas que pode ser colocada embaixo de viadutos; grades no entorno de praças e jardins; muros com pinos metálicos; construções sem marquises ou com gotejamento de água programado, ou seja, obras planejadas para compor lugares nas cidades e que nada mais são do que barreiras e parecem dizer “aqui você não pode ficar”. Estas construções retratam a violência na resposta dada pelo Estado que segue mantendo pessoas em situação de rua na ausência de direitos. O tal do princípio de ausência explica…As pessoas que ali vivem estão atravessadas por violências que perpassam os aspectos de gênero, raça e classe. No entanto, as obras, são repaginadas com as mais nobres pretensões nos planos de governo, afinal a prefeitura só busca “o ordenamento urbano”. Curiosa prioridade… Longe de se atingir uma abordagem rizomática frente a esta questão, não chegamos sequer à raiz do problema. Deslocam-se pessoas em situação de rua de um território, mas não é questionado quem elas são, de onde vieram, quais suas histórias, e muito menos quais as razões sociais que fazem a cada dia crescer o cenário de pessoas nestas condições. E é exatamente debaixo deste viaduto, mesmo com pedras pontiagudas que uma das personagens desta narrativa vive. Desde a Reforma Sanitária, fruto de um processo de luta em prol de uma saúde pública, há princípios e diretrizes que direcionam os processos de produção do cuidado dentro do dispositivo como, por exemplo, a garantia do acesso ao serviço e a tal da equidade em saúde, que não é nem princípio e nem diretriz do Sistema Único de Saúde (SUS), mas na medida em que se ampliam as investigações sobre os problemas sociais e suas intersecções na área da saúde, se torna necessária para justificar práticas prioritárias de cuidados a determinados grupos populacionais. No entanto, colocá-la em prática nem sempre é fácil e naquele dia, na UBS não seria diferente. Após uma manhã inteira de atendimentos, a enfermeira da equipe segue prescrevendo cuidados protocolares. Vai almoçar às 14:30hs, e na volta, sua agenda segue lotada. Neste momento, bate à porta uma agente comunitária de saúde (ACS) indignada, comunicando que mais uma usuária chegava para ser atendida. Com cara de julgamento, a ACS pergunta para a enfermeira como iria fazer, pois esta pessoa não tem nem documento. Absurdo! Como abrir o prontuário? Como cadastrar o CPF? Mas enfermeira, ela disse que mora na rua! Como assim? Como vou confirmar o endereço? Neste momento, a enfermeira se dirige à recepção e vai ao encontro desta usuária, até então sem nome, sem CPF, sem casa, sem histórico, sem nada. Fabiana, esse era o nome dela. Vestida com roupas rasgadas, descalça, e de cabeça baixa, Fabiana diz que se sente fraca e um amigo a levou até a clínica. A enfermeira então solicita que o cadastro dela seja realizado. O encontro não se esgotou naquele primeiro. O quadro de saúde de Fabiana era grave. Tuberculose. Estava pesando 32 quilos. Foram necessárias ao menos mais seis consultas (encontros) para o tratamento ter eficácia, e Fabiana não se tornar mais um número na estatística alarmante que o município do Rio de Janeiro possui quando o assunto é mortalidade pela doença Tuberculose. Ao longo dos encontros, com a melhora clínica da usuária, houve o fortalecimento de vínculo e a enfermeira então busca entender mais sobre a história de vida de Fabiana. Respeitando o tempo e o momento para reviver o passado difícil, no terceiro encontro, a mesma compartilha que morava com a mãe e o padrasto em Sepetiba, bairro distante do centro da cidade, e com dificuldades relata que o mesmo a abusava sexualmente. Foi então que, cansada dessa violência, ela resolveu fugir de casa e nunca mais voltou. Hoje com 23 anos, já está há 05 anos na rua. Diálogo difícil, tanto para quem fala, quanto para quem houve, afinal, como prescrever cuidados? Quais as condições ela teria para seguir as prescrições de autocuidado que nós, profissionais de saúde, sabemos fazer? Foi necessário reinventar. Acredito que tanto Fabiana para colocar em sua rotina a ida à unidade de saúde quanto para a profissional em dedicar mais tempo naquele encontro, mesmo com a porta lotada, e com os olhares atravessados dos agentes comunitários. Ao perceber que as condições de vida não cabiam nas linhas do protocolo foi necessário repensar a produção do cuidado de modo a ser elaborado COM Fabiana e não para Fabiana, lançando mão de outras ferramentas para pensar junto à usuária quem era a sua rede de apoio na rua, por qual nome/apelido ela poderia ser procurada, caso não retornasse aos atendimentos, se as medicações de antibiótico ficariam com ela na rua ou na unidade de saúde. Após 08 anos trabalhando no SUS, finalmente a profissional percebeu. Era assim então o tal do Sistema de Saúde Universal! Aquele que garante o acesso sem distinção, e consegue, a partir das singularidades de cada sujeito, planejar com ele a possibilidades para o alcance das demandas apresentadas. As normativas do Sistema Único de Saúde buscam dar conta, mesmo que a passos lentos, deste imenso vazio sanitário que a população vive. Tivemos avanços nestes 30 anos, mas dentro dos dispositivos de saúde ainda há resistência em pensar fora dos protocolos, ainda há estigmas, há racismo, e burocracias que engessam pessoas e processos. Assim, resta o matrimônio de ânsia e angústia. A ânsia de passar ao usuário os saberes prescritivos que aprendemos na faculdade e a angústia do profissional que se vê vítima de assédio, já que também é atravessado por forças de poder, seja pela exaustão da sobrecarga em atendimentos, pela pressão política nos cargos que ocupa, seja pela precariedade das relações trabalhistas. Conto esta história para expressar o desejo de que o profissional de saúde possa trabalhar com respeito e valorização trabalhista em prol de um Sistema Único de Saúde público de qualidade tanto para a população que mais precisa quanto para aqueles que nele trabalha. Desejo que o SUS seja para Fabianas, Marias, e tantos outros até então desconhecidos para o Estado. O SUS deve ser para todos, sem distinção. Sigo acreditando que é possível, mesmo que o caminho seja longo.

  • Keywords
  • Atenção Primária à Saúde; Pessoas em Situação de Rua; Exposição à Violência
  • Subject Area
  • EIXO 7 – Rotas Críticas - Narrativas de Violência Contra a Mulher
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