O Curso de Bacharelado interdisciplinar em saúde (BIS) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) visa formar psicólogas(os), enfermeiras(os), médicas(os) e nutricionistas tendo em vista as dimensões social, econômica, cultural, epidemiológica, biológica, política e organizacional que envolvem o campo. Pretende-se que estas(es) profissionais atuem a partir de valores éticos e democráticos nas práticas de cuidado, em consonância com os princípios constitucionais do Sistema Único de Saúde (SUS).
Para cumprir com estes propósitos, as atividades de ensino integram pesquisas e práticas de extensão em comunidades existentes no entorno do Centro de Ciências da Saúde (CCS/UFRB), na cidade de Santo Antônio de Jesus, Bahia, nos cinco dos seis semestres que compõem o currículo do curso.
Tendo como princípios metodológicos a problematização da realidade, a aprendizagem significativa e o protagonismo discente, o BIS/UFRB propõe a capacitação do(a) educando(a) no sentido do desenvolvimento de um olhar sensível aos determinantes sociais e ao direito à saúde no Brasil.
Este resumo é o resultado de uma destas experiências sobre o tema violência doméstica contra a mulher, realizada junto às Agentes Comunitárias de Saúde (ACSs) da Unidade de Saúde da Família Marita Amâncio, situada no bairro Cajueiro, no semestre de 2022.1.
Os casos corriqueiros de misoginia no mundo atual são alarmantes e considerados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma questão de saúde pública de alcance global. Em razão dos preocupantes índices de feminicídios, consideramos esta questão de grande relevância no sentido de fomentar uma formação profissional em saúde alinhada às demandas e urgências da sociedade. Ademais, as Agentes de Saúde desempenham um papel crucial e podem ser peças-chave na prevenção e combate à esta violência, por serem um elo entre as vítimas, os serviços e as demais redes de proteção. Mas quais as percepções das ACSs acerca desta questão? Como lidam com as situações relacionadas? Qual suporte recebem da unidade de saúde em que atuam diante dos casos?
Em experiências de extensão anteriores e em contato prévio com equipes da USF Marita Amâncio, as(os) estudantes da UFRB identificaram que apesar dos altos índices de violência doméstica contra a mulher na comunidade do Cajueiro, as vítimas procuram apoio junto a seus familiares ou mesmo em igrejas e não na instituição.
Tal constatação suscitou a curiosidade científica das(os) discentes para a realização de um estudo científico sobre as percepções das Agentes de Saúde da referida área adscrita sobre a violência doméstica contra a mulher e o modo como a USF em questão lida com os casos.
A violência doméstica contra a mulher é caracterizada quando ocorre no convívio familiar ou afetivo e, embora possua vários tipos como a psicológica, sexual, patrimonial, privativa e moral, o fenômeno costuma ser percebido ou denunciado quando ocorre a agressão física. Tal visão equivocada ocasiona a falta de acolhimento e devido encaminhamento também nos serviços de saúde, seja por desconhecimento, negligência ou imperícia das(os) profissionais do campo.
Tendo em vista este contexto, estabelecemos as ações a serem desenvolvidas. Inicialmente foi retomado o contato com a enfermeira-chefe e, após a sua anuência, realizamos uma reunião entre as(os) estudantes, as(os) docentes e as ACSs, que abrilhantam a reunião com suas experiências acerca do tema em relevo.
Posteriormente, desenhamos o projeto de pesquisa em sala de aula estabelecemos os seus objetivos, quais sejam: compreender a percepção das ACS's da USF Marita Amâncio sobre a violência doméstica contra mulher na cidade de Santo Antônio de Jesus, isto é, o que elas entendem, como lidam, como são impactadas por este fenômeno e o papel da Unidade de Saúde no enfrentamento do problema. A relevância desta pesquisa se expressa pelo fato de que o modo como estas profissionais pensam a violência implica diretamente na forma como agem diante dos casos que se apresentam.
Para fins de realização desta proposta adotamos o método qualitativo e etnográfico. Segundo Minayo (2012), o verbo principal da análise qualitativa é ‘compreender’. Sua riqueza consta justamente na possibilidade de análise do mundo do outro, aproximando-nos ao máximo do modo como ele lê a sua própria realidade. Assim, antes do trabalho de campo realizamos em sala de aula reflexões sobre etnocentrismo, relativismo e cultura, bem como sobre estratégias de pesquisa.
Utilizamos como instrumentos de investigação um roteiro semi-estruturado de entrevista, através do qual foi possível captar as representações das interlocutoras e descrever a realidade a partir de suas visões de mundo. Todas as participantes assinaram o ‘Termo de Consentimento Livre e Esclarecido’ e aceitaram gravar as suas falas, o que nos permitiu descrever as narrativas para fins de interpretação científica.
O grupo se dividiu em duplas e trios para realizar a coleta de dados e redigir um diário de campo sobre a condição de pesquisadores(as) e as percepções que tiveram das entrevistadas. Os dados foram categorizados numa tabela e compuseram um quadro de roteirização dos discursos, para fins de realização das análises.
Os resultados encontrados evidenciaram que as ACSs da USF Marita Amâncio compreendem que há diferentes tipos de violência para além da física, mas que encontram dificuldades no lidar com a situação, devido ao fato de muitas mulheres da comunidade não terem esta mesma percepção e, portanto, não aceitarem denunciar seus parceiros.
Nos relatos algumas entrevistadas demonstraram que sentem-se impotentes diante das situações, pois muitas vezes as identificam, mas não contam com o suporte necessário do município para proteger as vítimas, nem mesmo nos encaminhamentos judiciais.
Outras demonstraram que diante desse fenômeno atuam com empatia, tentam fazer o acolhimento e se transformam numa rede de apoio emocional também por serem mulheres.
Também emergiram medos de represálias em relação ao enfrentamento a esta violência, pois as ACSs estão sempre no mesmo local e em contato com os agressores que podem se voltar também contra elas. Ou seja, as situações de violência que vivenciam afetam a sua saúde mental.
Sobre o papel da Unidade de Saúde, o estudo detectou uma falta de articulação entre os profissionais da área, as próprias ACSs e os órgãos públicos no combate à violência doméstica contra a mulher. As vítimas são comumente encaminhadas à polícia em casos de agressão física. Esta constatação aponta para uma falha grave na gestão municipal, afinal os casos constantes de insegurança das mulheres devem ser objeto dos órgãos públicos e das instituições de saúde.
A USF não é vista pela população feminina como um suporte para as vítimas e nem oferece apoio às próprias ACSs quando destas demandas, sendo que seu o papel é o de oferecer assistência integral à população da sua área de abrangência e proteger as equipes multiprofissionais.
Portanto, é nítida a necessidade de constituição de uma rede municipal na cidade Santo Antônio de Jesus para proteger as mulheres da violência. Na pesquisa não ficaram evidenciadas estratégias de planejamento da equipe multiprofissional da USF para enfrentamento e sim práticas individuais das ACSs.
Mesmo diante desta situação crítica, a experiência teve como resultados a sensibilização das(os) estudantes da UFRB em relação ao tema em questão, o fomento a práticas de cuidado socialmente responsáveis e a uma atuação multiprofissional futura respeitosa e colaborativa. Experiências como estas transcendem a sala de aula, propiciam a valorização das vivências sociais, a relação entre ensino-aprendizagem-trabalho e oportunizam a produção de conhecimentos.