A PRODUÇÃO DA LOUCURA E AS CONTROVÉRSIAS DA CONSTRUÇÃO DA SAÚDE: POR EXPERIMENTAÇÕES DO CUIDADO PARA ALÉM DA NORMATIZAÇÃO DIAGNÓSTICA ´PSIQUIÁTRICA

  • Author
  • Marta Clarice Nascimento Oliveira
  • Co-authors
  • Mariana Tavares Cavalcanti Liberato
  • Abstract
  • Este relato parte das reverberações de um trabalho de conclusão de curso em andamento que versa sobre a produção da loucura e as controvérsias envolvidas na invenção da normatividade. Ideias que embasam, hoje, o circuito de cuidado ofertado no campo da saúde mental. O ponto de partida, e também de chegada, que se formata no âmbito da saúde mental, ganha contorno com as categorias diagnósticas e a patologização da vida, que hoje são fluxos repetitivos e concretos, quando se pensa o adoecimento psíquico contemporâneo. A fim de produzir uma saúde ético-estético-política, capaz de romper com instituídos e cristalizados pensamentos que compõem nosso cenário contemporâneo da assistência, a proposta deste estudo acredita que o cuidado pode ser para além do diagnóstico e que o sofrimento, não necessariamente, diz de categorias nosográficas, mas, sobretudo, de quadros produzidos por contextos neoliberais, racistas, heteronormativos, capacitistas, classicistas e coloniais. 

    Esse processo descreve um estudo teórico, que culmina em um trabalho de monografia para conclusão de curso ainda em andamento, e tem como referenciais teóricos, autores  clássicos que discutem sobre o modelo de atenção psicossocial, sobre a reforma psiquiátrica brasileira e a lógica antimanicomial, como Paulo Amarante, Abílio da Costa-Rosa, Silvio Yasui, Manuel Desviat, Frantz Fanon, Franco Basaglia e Michel Foucault. Junto a este processo, somam-se discussões contemporâneas sobre a medicalização da vida e a tendência patologizante de classificação diagnóstica psiquiátrica, pensando, ainda, nas propostas decoloniais de cuidado em saúde e nos estudos interseccionais, de raça, território, gênero, classe e sexualidade, numa escrita que questiona as relações estabelecidas no âmbito da saúde mental no que se refere ao uso do diagnóstico psiquiátrico, como via de mão única para vislumbrar o sofrimento psíquico. 

    Com as interlocuções estabelecidas, percebe-se uma linha que se inicia na produção da loucura como categoria patológica na época do nascimento dos manicômios, que traz os primeiros disparadores da sociedade capitalista, num ritmo de controle social que segregava a diferença em prol de uma idealização colonial e produtivista. A criação do insano atrela-se a uma moralidade psiquiátrica e burguesa que compôs aquele período e traz em pauta o enviesamento sistemático atrelado à construção da figura que iria se tornar o símbolo da desrazão, e consequente corpo do tratamento em saúde mental. A diferença surge nessa via, como um determinante muito mais considerado do que a própria falta de uma dita razão ao longo da história na produção do desatino, repercutindo nos estados atuais de prognósticos e medidas constituídos na assistência em saúde mental. 

    A partir desse reconhecimento, percebe-se atualizações de uma lógica patologizante da vida que cristaliza movimentos que são dissidentes às categorias diagnósticas psiquiátricas, assim como a criação da ideia de doença mental pelo poder psiquiátrico, séculos atrás. Insistindo num encaixotamento da diferença em instituídos, continuam nessa trama, os manuais diagnósticos e toda a operação que se alinhava em torno de seus usos. As manicomializações fundidas no cotidiano encontram vias para imperar retornando com outras roupagens, visto que a redução de complexidades vivenciais em um fluxo de patologia revela, sobretudo, um desejo de contenção que faz parte da produção que estrutura nossa sociedade marcada pela violência e hegemonia. Nesse ideal de um alcance de um estado perfeito, de uma ideologia colonial que é de domínio de uma classe rica, branca e normativa, se estabelece uma relação com a alteridade de caminho dual. Pois, concomitantemente se produz o transtornado, o portador de um déficit, para que os grandes fármacos possam ser consumidos, e, contudo, extermina-se esse corpo, pois o que destoa, vai ser mortificado gradativamente, cronificando-se, também, com medicamentos, e, prendendo-se a uma visão encaixotada de se ver, que o resume a uma patologia. Entende-se essa tendência de patologização de todo e qualquer movimento, emoção ou comportamento que se diferencia de uma norma esperada, como reflexo de desejos macropolíticos de controle do desvio, materializando e mercantilizando essa prática através de bíblias diagnósticas completamente universalizadas e inconsistentes teoricamente, com um fluxo de tratamento estratificante que compõe hoje a contemporaneidade. Atualmente, as classificações nosográficas entoam a cena da saúde mental e transbordam esse espaço, invadindo o cotidiano, as redes sociais e a forma de ver a vida. Não há mais espaço para a complexidade do sofrimento ou para a experimentação que não é racionalizada, pois antes de qualquer sentido pro sujeito de determinadas vivências, o que chega primeiro com esta forma de vislumbrar a existência, é, unicamente, o diagnóstico psiquiátrico. 

    De tal modo, entendendo a saúde como um campo transdisciplinar, que preza pela pluralidade e, hoje, guia-se por um caminho mais aberto e contextualizado de entender o ser humano depois dos movimentos de reforma psiquiátrica e da desinstitucionalização, aposta-se com esse estudo, naquilo que ultrapassa o reducionismo nosológico de ver a complexidade humana e as expressões disso em distintos contextos. Pistas surgem quando pensamos em experiências como com os grupos de Ouvidores de Vozes, o cuidado com arte e a interseccionalidade do cuidado, incorporando perspectivas ancestrais e decoloniais na esfera da saúde. Além disso, uma virada de pensamento é fundamental para entendermos o desvio não mais como algo à parte de uma norma, mas, sim, como aquilo que se diferencia dela e produz vidas menos centralizadas, padronizadas, excludentes e reducionistas. Para isso, inclui-se e se reconhece que o desvio tão tamponado há séculos, por distintas operações, encontra concretude nos corpos marginalizados socialmente, em constante tensão com vetores de força como o racismo, a LGBTI+fobia, o cisheteropatriarcado, o capacitismo e o classicismo. Entender essas bases na produção do cuidado em saúde mental na realidade brasileira pode transformar a construção de saúde, bem como a assistência que é desenvolvida neste âmbito. É preciso reconhecer as contradições envolvidas na construção desse aparato como campo e tensionar esse espaço, para que o saber que o sustenta, que vem de uma égide europeia e elitizada, possa ser transgredido por práticas mais concernentes à realidade brasileira de cuidado. 

     

    Dessa maneira, não se idealiza desconsiderar a angústia e a dor que fazem parte do ser humano, mas se propõe pensar sobre elas a partir do que significam na vida do sujeito, na sua rede de convívio e apoio, no seu território, cultura, religião, a partir dos seus desejos e, também, de seus marcadores identitários. Com essa prerrogativa, tensiona-se o campo de cuidado em saúde mental com o desejo de expandir os olhares sob as múltiplas colocações corpóreas na vida, vislumbrando-as não apenas como patologias, mas, sobretudo, como configurações que fazem parte do viver cotidiano e que devem ser amparadas de formas mais inventivas e sensíveis de ver o existir. 

     
  • Keywords
  • Loucura, saúde mental, cuidado, diagnóstico psiquiátrico, normatividade
  • Subject Area
  • EIXO 6 – Direito à Saúde e Relações Étnico-Raciais, de Classe, Gênero e Sexualidade
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