Este resumo aborda a construção da noção de saúde e doença pelo povo indígena Ticuna, que é moldada por mitos, rituais, restrições e espiritualidade. O objetivo deste é oferecer uma mostra desse universo repleto de significados e importância, que está vivo, e presente no seu território e manifesta se no cotidiano desse povo.
A metodologia partiu da observação local, enquanto profissional de saúde e também por leituras sobre a cultura ticuna. Essa abordagem permitiu mapear as nuances do conhecimento existente sobre a concepção de saúde e doença na cultura Ticuna, facilitando a compreensão da saúde e da doença do povo Ticuna.
Os povos indígenas geralmente preservam sua cultura de geração em geração por meio da oralidade, mantendo vivas suas tradições e saberes. Isso inclui não apenas suas práticas espirituais e rituais, mas também sua medicina própria, que é conduzida por especialistas reconhecidos na comunidade, que em alguns povos podem ser os pajés. Essa medicina, enraizada na cosmologia indígena, molda profundamente a maneira como esses povos concebem a saúde e tratam as doenças.
O povo indígena Ticuna é um dos povos que possui e preserva sua cultura transmitindo a de geração a geração por meio da oralidade, podemos encontrar os Ticunas no Amazonas em meio ao Alto Rio Solimões em vários municípios como Tabatinga, Benjamim Constant, Amaturá, Santo Antônio do Içá e em Tonantins. De acordo com dados do IBGE são o maior povo indígena do Brasil, maior parte dos Ticunas falam sua língua materna, são estimulados a oralidade na língua ticuna desde pequenos.
Se autodenominam como povo “Maguta” que significa “povo pescado por vara” esta autodenominação está ligada ao seu mito cosmológico da criação do povo ticuna que se deu no lago sagrado do Eware onde foram pescados por uma vara de macaxeira por Yoi herói ticuna. Essa cosmologia Ticuna está relacionada à complexidade dos saberes que transcendem o físico, estendendo-se ao plano espiritual e cultural. Um dos elementos de grande importância simbólica para este povo é o jenipapo, que se torna um elemento central da mitologia Ticuna, que alimentaram os peixes que estavam no Igarapé do Eware que originaram seu povo, sendo utilizado na pintura corporal, em várias ritualísticas, importante desde o nascimento até a morte, protegendo contra maus espíritos e demais funções.
O povo Ticuna entende que a saúde vai para além da simples ausência de doenças, transformando-se em um estado de "bem-estar" que abarca todos os aspectos da vida, tanto individual quanto coletiva. Essa perspectiva integral reconhece a profunda interligação entre o bem-estar físico, mental e espiritual do indivíduo, a harmonia social entre os clãs e o equilíbrio com o mundo natural. Ou seja, saúde é algo que sai do âmbito individual e permeia todo o coletivo.
Já a doença pode ser entendida para além de um desequilíbrio físico individual, já que compromete não apenas o indivíduo enfermo, mas também a família e a comunidade, interrompendo atividades como a produção de alimentos e rituais. Assim, a doença é percebida como um evento coletivo, destacando a importância da harmonia social da comunidade para a manutenção da saúde. Este “para além” pode estar relacionado também com eventos espirituais relacionados a inúmeros fatores que podem levar o indivíduo e a coletividade a desarmonia e a doença.
A compreensão das doenças pelos Ticuna está entrelaçada com as práticas xamanísticas. Eles relacionam a doença e suas causas naturais a agentes externos, muitas vezes associados aos pajés. Ou seja, essas causas externas, como feitiços, podem ser lançadas por inimigos. Além disso, existem diversas regras e normas que devem ser observadas por todos. Violar essas normas de conduta, como restrições alimentares ou sexuais, e negligenciar preceitos relacionados a diferentes fases da vida, como a gravidez, pós parto, pode resultar em doenças individuais ou mesmo coletivas.
Um dos elementos fundamentais para a saúde para o povo ticuna são suas ritualísticas. Os rituais tem grande importância em todas as fases da vida desse povo, destaco aqui o ritual da moça nova que é um ritual que ocorre quando a menina tem sua menarca, esse ritual tem mais ou menos três dias de festa e tem o intuito de afastar espíritos maus que são atraídos pelo cheiro da menstruação, proteger a menina e a comunidade desses espíritos e atrair bons espíritos para comunidade e prepara-la para a vida adulta. Percebemos assim que o comportamento individual tem impacto na saúde coletiva, e os ensinamentos e rituais xamânicos, desde o nascimento até a idade adulta, têm o propósito de prevenir doenças, fortalecendo os indivíduos e protegendo-os das influências do mundo espiritual.
O pajé é um dos elementos mais importantes do processo saúde e doença do povo Ticuna, são fundamentais na compreensão e tratamento das doenças no âmbito físico e espiritual, manutenção do equilíbrio e harmonia na comunidade, podendo ser curadores ou praticantes de feitiçaria. São mediadores entre o mundo físico e o espiritual, através do transe por meio de rituais sagrados, cantos e uso de plantas medicinais, podem discernir o agente causador da doença e realizar rituais de cura que ultrapassam os limites da medicina ocidental. O papel do pajé se entrelaça com outros especialistas, como parteiras e curandeiros, cada um com seus conhecimentos e habilidades específicos.
Os elementos que compõem saúde e doença para o povo ticuna permeiam entre o mundo físico e o espiritual, são elementos que transitam sob a responsabilidade individual de cada indivíduo de respeitar regras e normas para harmonia coletiva , havendo um ponto de desequilíbrio o Pajé intervém afim de investigar e organizar espiritualmente os problemas para que a harmonia seja reestabelecida. Um outro elemento principal de todo esse contexto é o respeito que se deve ter a todo conhecimento desse povo e seus especialistas em medicina no caso os pajés, pois ele já exerce essa medicina milenarmente e sempre com boa aceitação na sua comunidade.
É importante reconhecer a complexidade e a multiplicidade de saberes que permeiam a medicina Ticuna , ao tentarmos compreender essa profunda interconexão, abrimos caminho para reflexões importantes sobre os vários modos de fazer saúde dentro dos territórios sendo este um convite a repensar os modelos de cuidado, atuais.