O devir dos encontros e novas costuras no cuidado: experimentações no trabalho em saúde mental e bem-viver em um grupo terapêutico de jovens em Belém (PA)

  • Author
  • Carlos Eduardo Lima Leão de Araújo
  • Co-authors
  • Márcio Mariath Belloc , Priscila Iara Louzada , Levy Araújo Dias Paes , Maria Eduarda Pantoja dos Reis
  • Abstract
  • Apresentação: O Bem-viver, também conhecido como “Buen-vivir” e “Sumaq Kawsay” (idioma quechua), pode ser definido como uma filosofia advinda das práticas tradicionais de alguns povos nativos da América Latina, principalmente da região do Equador. Ele associa princípios, cosmovisões e estilos de vida que têm como cerne ético a defesa da relação harmoniosa entre os seres humanos e a natureza, realizando simultaneamente uma renúncia dos modos de vida pautados na exploração e acumulação desenfreada. Alberto Acosta (2016) aponta que, em contraponto a uma subjetividade neoliberal - ou capitalística, como sistematizam Deleuze e Guattari -, o bem-viver se expressa na articulação política da vida, no fortalecimento de relações comunitárias e solidárias e nas mais diversas formas do viver coletivo, com diversidade e respeito ao próximo. Tendo em vista essas e outras elaborações partindo dessa filosofia, podemos pensá-la a partir de uma interface interessante com uma atenção básica em saúde mental crítica, ampliada e que não se restringe a uma terapêutica biomédica hegemônica. O intuito deste trabalho não é negar a produção do saber técnico científico, mas sim de uma composição que possa realocar o foco dos esforços do cuidado para uma concepção mais heterogênea e que abarque múltiplas epistemologias e cosmovisões. Na tentativa de demonstrar essa articulação do bem-viver com o trabalho em saúde mental coletiva na atenção básica, apresentamos aqui o relato de experiência em um grupo terapêutico de jovens de uma unidade básica de saúde em Belém do Pará. Neste contexto, como será melhor explicitado, é possível apontar que a forma de conduzir as discussões do grupo realizam uma interlocução com os preceitos éticos e políticos do bem-viver, e de outros aportes teóricos relevantes como a esquizoanálise e a análise institucional, caracterizando os encontros como um espaço de experimentação para outros devires existenciais que não o capitalista-colonial. Desenvolvimento: Este trabalho caracteriza-se como um relato da experiência em uma unidade básica de saúde. A experiência parte da articulação dos territórios de vida, o serviço de saúde e a Universidade com o projeto de pesquisa “Promoção e proteção da saúde mental e do bem-viver”, aprovada pelo Parecer Consubstanciado nº 6.245.985/2023 do Comitê de Ética Pesquisa do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Pará (UFPA). Objetiva o mapeamento do uso e análise das estratégias de cuidado em saúde mental coletiva no serviço de saúde, bem como articulá-las com o pensamento decolonial do bem-viver. Tratando-se especificamente do funcionamento do grupo terapêutico de jovens, os encontros ocorrem de modo quinzenal e, com mediação da psicóloga da unidade juntamente com discentes membros da equipe da pesquisa, os participantes falam sobre os mais variados temas sob diferentes óticas. Formado inicialmente em 2021, a partir do levantamento das demandas em comum do público-alvo atendido nas consultas individuais no período da pandemia, atualmente o GT jovem caracteriza-se como um espaço seguro de contestação do instituído e do exercício da autonomia e cuidado de si. Prezando sempre pela horizontalidade nessa dinâmica terapêutica - o mediador é tão somente uma figura provocativa, sem nunca estabelecer normativas engessadas e diretivas -, o coletivo já trabalhou temáticas como  ansiedade; valores e ética; cultura neoliberal capitalista; desejo; autoimagem e sentimentos de si; linguagem e narrativas; comunicação; luto e vários outros temas que foram sendo definidos a partir dos afetos e diálogos que emergiram progressivamente nos encontros, zelando-se sempre pela autonomia do próprio grupo em desenhar seus limites e impor suas vontades. Prezando também pela autoanálise e autogestão do grupo, desenvolvemos um processo de avaliação, seja ao final de cada encontro de forma pontual, seja de forma mais elaborada ao final de cada semestre para verificarmos em coletivo o que e como produzimos esse processo terapêutico, seus efeitos, lacunas, soluções, acordos e propostas de continuidade. Resultados: Como primeiro apontamento tratando das reflexões e análises teóricas, podemos fazer uma ponte entre as práticas terapêuticas do GT jovem, o bem-viver e a esquizoanálise. A principal relação estabelecida nesses estudos advém do conceito de devir, trabalhado na teoria deleuziana, que se refere à processualidade e aos fluxos de mudança como elementos chave na composição da vida e da realidade como um todo, indo contra um fixismo engessado e em favor da elaboração de múltiplas possibilidades de existência sempre em transformação. Nesse sentido, aqui temos o devir-grupo - ou grupo-devir - como um constructo teórico esquizoanalítico que, bem como o próprio bem-viver, flexiona os modos de subjetivação hegemônicos atravessados pelas feridas coloniais e pelo neoliberalismo necropolítico. Aqui o objetivo é tensionar esses modos de vida instituídos utilizando um ethos crítico - poderíamos nomear como devir-bem-viver? - que reverta os assujeitamentos e que respeite as singularidades sem produzir agenciamentos individualizantes que limitem o fluxo do grupo. Somado a isso, menciona-se aqui uma estratégia de cuidado utilizada e construída com o GT jovem que se destacou ao longo do andamento da pesquisa no território: as chamadas “saídas”. Elas consistem em organizar com os participantes um local para a realização do encontro fora das instâncias da UBS, sendo que as localidades escolhidas na maioria das vezes proporcionaram, em maior ou menor grau, um contato com a natureza. Este contato, na contramão de um esvaziamento muito comum em alguns trabalhos em saúde que igualam o bem-viver a uma mera interação com ela que produz um “bem-estar”, serviu como uma oportunidade de reiterar marcadamente o nosso compromisso crítico com uma terapêutica desinstitucionalizante e com o Sumaq Kawsay reforçando a desconstrução da dicotomia alienante homem e natureza. O intuito é de estabelecer uma conexão verdadeira e respeitosa para com os outros seres, mediando a experiência de forma que o grupo-devir seja atravessado por uma pedagogia da coexistência, rompendo com a alienação a qual todos sofremos ao longo da vida em relação à pachamama. Critica-se, assim, um antropocentrismo de postura fagocitária e predatória para dar lugar a um sociobiocentrismo, como aponta Acosta, em contexto terapêutico. Considerações finais: Em síntese, este trabalho apresenta uma alternativa de composição de trabalho em saúde que tem como norte a circularidade, a fluidez e a horizontalidade. Abdicamos da hegemonia das classificações e nosografias que possam culminar em “manuais” prescritivos que restrinjam as múltiplas formas de proteção e produção da saúde mental e bem-viver. Pelo contrário: priorizamos aqui o resgate de outras epistemologias silenciadas que não visam a supressão das singularidades dos sujeitos em prol de um discurso instituído, somando-as a uma produção de cuidado que gera fissuras nos modos de produção da subjetividade colonial capitalística. Pensar esta ética de maneira crítica na saúde mental coletiva, sobretudo na atenção básica, se faz de grande importância pois, como aponta Ailton Krenak, faz um retorno ao sentido de viver verdadeiramente em sociedade, do próprio sentido da experiência de vida, de estar radicalmente vivo pois “a vida não é útil”. Este modelo é tecido a partir do trabalho coletivo e em vivo em ato, um constante gerúndio de processualidades que vão se modificando em confluência com os movimentos afetivos macro e micropolíticos nos encontros.

  • Keywords
  • Bem-viver, grupo terapêutico, saúde mental
  • Subject Area
  • EIXO 2 – Trabalho
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