Apresentação: Este presente estudo busca explorar a iniciativa do serviço de saúde promovido em uma unidade básica de saúde de Belém-PA, em compor um Grupo Terapêutico de Homens no âmbito da atenção primária, anunciando seus percalços e avanços durante o processo de promoção e proteção da saúde mental e do bem-viver no contexto urbano amazônida.
Desenvolvimento: A vigência de um regime patriarcal, no qual a dominância dos corpos e subjetividades esmaga o feminino e suas nuances, afeta, para além do que se é compreendido como “por” ou “de” mulher, plurais instâncias da vida, como é o caso do cenário atual dos serviços de saúde presentes na atenção primária. Essa contaminadora fábrica de modos de produzir afetos e assujeitamentos está, intrinsecamente, ligada à violência e negligência de si e do outro, pois é na atribuição de menos dignidade que se destroi potencialidades de e no viver.
Nessa conjuntura, pode-se refletir acerca dos efeitos colaterais do machismo na produção e manutenção de dispositivos de saúde voltados para a população masculina do país, extensão territorial que predominantemente reproduz violências generalizadas e impulsionadas pelo machismo, seja nas instituições, seja nas relações interpessoais. A ideia atribuída à suposta fragilidade que o papel feminino carrega e sua associação com o cuidado – da casa, do cônjuge, dos filhos, dos pais – atravessa, também, as noções de saúde. “Cuidar de si é um sinal de debilidade e vulnerabilidade?” aparenta ser um questionamento válido em diversos cenários e não somente quando feito em unidades de atendimento à saúde, pois o cuidado – ou a sua falta – está vividamente presente nas relações interpessoais como um todo e, por sua vez, associado de forma pejorativa ao papel exclusivamente feminino. O corpo hétero-cis-normativo masculino, ao beneficiar-se dos privilégios de sua posição na sociedade, encontra-se frente ao impasse de estar sujeito às próprias amarras, como a negligência à saúde.
Sabe-se que é escassa a procura do homem por cuidados além da prevenção de doenças terminais. No que tange à busca dessa população por projetos terapêuticos em Unidades Básicas de Saúde, a literatura se mostra quase ou completamente nula, porém nos deixa com reflexões mais que palpável: sendo o Brasil o único país da América Latina a desenvolver uma política de saúde direcionada à saúde do homem (PNAISH), por quê há uma inexpressividade na produção de cuidado para com esse público alvo? É dever somente da população se conscientizar, magicamente, acerca dos riscos que a ausência do homem em espaços promovidos para a circulação da fala e do afeto e, em contrapartida, dos benefícios que o acompanhamento da saúde pode causar? A instituição, enquanto local de produção de projetos, atravessada pelas cristalizações e enrijecimento provenientes do machismo, não contribui para a fortificação dessa barreira de impedimento de acesso ao não impulsionar projetos de caráter emancipatório dessa lógica opressora e violenta?
É nesse sentido, que a urgência de acolhimento às demandas da saúde do homem se materializam no serviço localizado na Unidade Básica de Saúde do Satélite, em Belém do Pará – local onde o projeto de pesquisa pela Universidade Federal do Pará, intitulado “Promoção e proteção da saúde mental e do bem-viver amazônidas”, e uma linha de pesquisa nomeada “Experiência de promoção e proteção de saúde mental e do bem-viver na Unidade de Saúde do Satélite” se desenvolvem. Surge, a partir da escuta individual do consultório psicológico, falas similares de homens na faixa etária de 30 a 59 anos, relacionadas a ansiedade pós período pandêmico, preocupações e cobranças dos papéis assumidos cultural e socialmente, angústias do desemprego e sentimento de fracasso no prover patriarcal. Visto a demanda de produzir demasiada fissura no cuidado, a sondagem de participantes, esclarecendo o processo ético que a dinâmica grupal terapêutica promove, livre de julgamento e espaço de identificações com pares nas falas e nos atravessamentos, cria-se, em novembro de 2023, o Grupo Terapêutico de Homens na UBS do Satélite.
Atravessamentos como autopunição, construção da noção de como o julgamentos nos afeta dentro da dinâmica do olhar para si, auto suficiência, “aprender” a pedir auxílio, memória e o resgate da referência masculina, tempo e brechas no cuidado em meio ao contexto urbano capitalista e amizade, foram temas propostos pelos participantes e trabalhados em formas de diálogo, projeção de pintura em máscaras, fantasia guiada, exercício de respiração e música, como dispositivos para o exercício emancipatório, em uma ação dialógica à fala e os afetos envolvidos. A perspectiva adotada para manejar o GT é pautada nas noções de transversalidade na troca de cuidados, produção e autonomia no processo terapêutico, que são característicos do movimento emancipatório que a filosofia dos povos nativos Latino Americanos – Bem-viver, Buen-vivir, Sumaq Kawsay – nos convoca a nos re-apropriamos. Voz ativa e circularidade do cuidado são privilegiados no processo de desconstrução da imagem estática do homem que não procura por cuidado. Portanto, não se trata de uma redução de estratégia, pois procura se apresentar como movimentação decolonial e de multiplicidade na promoção e proteção de saúde, cultivando esse olhar para processos heterogêneos, construindo o espaço grupal como um lugar de produção de reflexões em ato para todos os envolvidos. Trabalha-se, além do mais, com noções interdisciplinares no cuidado, não se enclausurando em uma abordagem, mas sim construindo um olhar em diversas perspectivas, sendo estas provenientes de várias fontes de saber que não somente pelo modelo hegemônico científico positivista, como os saberes da esquizoanálise, da análise institucional, da filosofia, da arte e da antropologia.
Resultados: Pôde-se experienciar a fissura causada por um movimento instituinte na construção de um espaço para a população a quem se dirige o cuidado – homens – como também para o serviço, mostrando-se de extrema importância no contexto da atenção primária em saúde. A experimentação de um espaço para a fala ativa masculina para pôr no mundo, por meio do coletivo, as suas angústias e os seus desejos, demonstra a potencialidade de promoção e proteção de saúde que o serviço pode gerar no território. Entretanto, a manutenção do GT apresentou pontuais impasses, como o pequeno número de participantes (em média, 3 pessoas por encontro), decorrente de múltiplos fatores, dentre eles a falta de disponibilidade, da mesma forma como a resistência em entrar em contato com temáticas mais profundas.
Considerações Finais: Em suma, esse resumo expande as possibilidades de reflexão acerca do papel do serviço na promoção e proteção de saúde mental e bem-viver, visto que há demandas de caráter correspondentes à criação de espaços para circulação da fala do homem no âmbito da atenção primária em saúde. Apesar de haver resistências – institucionais, profissionais e pessoais –, das equipes que compõem os serviços e dos usuários, a modalidade terapêutica grupal se mostra como uma perspectiva outra de propor o manejo do trabalho com esse gênero, como no caso da experiência vivenciada na UBS do Satélite, valendo-se de uma visão questionadora do modelo biomédico e, simultaneamente, apropriando-se de saberes que privilegiam a ancestralidade, a natureza, a autonomia e a emancipação do modo de viver neoliberal necropolítico. Por fim, buscou-se instigar e contribuir, de modo expressivo, para as áreas de saber da psicologia e da saúde mental coletiva, amadurecendo o diálogo e provocando novas investigações a respeito das potencialidades de criação dos serviços de saúde presentes na atenção primária.