A Saúde da Família é uma política de estado que consolida a Atenção Primária brasileira, a estrutura do SUS e as políticas que impactam a formação profissional em diversas áreas. Tratamos aqui de cartografar o trabalho vivo em ato, procurando captar as vivências das autoras em caminhos formativos que se deram na APS e seus poderes curativos no processo de modelar o ser médica de gentes. Para tal, exploramos um percurso em quatro atos: graduação; residência em Medicina de Família e Comunidade; primeiro emprego e o porvir da preceptoria e docência. A graduação e o internato O começo da vida médica acontece entre paredes institucionais em que se coloca a tarefa de criar indivíduos iguais, moldados à compreensão do que é ser médico. A dinâmica em que opera o curso - concorrência entre os pares, capacidade de responder sob demanda de protocolos rígidos - também convive com a característica de preparar seus egressos para um Trabalho Morto (TM) que ceifa a criatividade e destitui de importância o processo relacional. Na vivência das autoras a APS foi sempre tratada como um espaço de menor valia, merecedora de desprezo; no entanto, nós encontramos acolhimento e vínculo permeados por trabalho vivo. Ainda assim, no decorrer da graduação vivia-se o TM, revisitando doenças e aplicando receitas, sem a singularidade dos sujeitos, reforçando de maneira enfadonha a crueza dos médicos de gente “intransigente”, que se justificava em ato duplamente criminoso. A chegada ao internato veio acompanhada de excitação e medo, pois foi onde se colocou em prática, de forma quase profissional, aquilo que se aprendeu ao longo dos anos. Passou-se de aluno-escutador, que não tem voz nem vez, a “quase médico”, que deve tomar iniciativa e mostrar-se conhecedor e seguro das condutas mesmo sem supervisão adequada. Foi então nessa vivência que surge uma oportunidade de vida na passagem pela APS: um espaço de cura começa a ocorrer, após longos anos de sofrimento e censura dos sentimentos. Na relação com as pessoas na APS se resgata a necessidade de individualizar o cuidado, de priorizar a escuta e deixar de lado a arrogância a fim de cuidar das pessoas. De repente se volta ao estado de homeostase, na qual os afetos podem ser demonstrados e, na maioria das vezes, reforçados tanto pelos preceptores como pelos indivíduos nas relações. Quando se sai da bolha do rodízio na APS e se retorna às outras áreas, a sensação vivenciada é de achacamento, de enterro da possibilidade de oferecer cuidado, e a volta ao tratamento mecânico de corpos mortos. A residência (morada) em Medicina de Família e Comunidade A entrada na residência traz um respiro: se constitui como um espaço de certa forma protegido para exercer a medicina de família com a preceptoria/proteção de alguns supervisores, no qual aprende-se e apreende-se o ofício de curar pelo cuidado. Naquele lugar se estuda e se ensina a colocar em prática o que os livros nos ensinam sobre método clínico centrado na pessoa, o cuidar além da doença. Alguns “mestres” mostram o caminho obscuro de ser médico sem prepotência, e nesse caminho também nos deparamos com a falta de credibilidade no trabalho da APS. A percepção de um “médico do postinho”, que sabe pouco mas abraça muito é amplamente divulgada; e as caretas começam a brotar nos conhecidos ou desconhecidos que questionam sobre qual residência se faz. Para as autoras, esse movimento só gerava mais gana de fazer um bom trabalho e ser a cara da APS forte e competente – devolver ao sistema aquilo que ele oferece de bom grado à população. Neste lugar de residente, nada-se contra a corrente do movimento médico, no qual se valorizam as postagens em redes sociais, descobertas mirabolantes de doenças graves e raras e exames de última geração; em contrapartida, constrói-se em parceria com as pessoas que atendemos um universo limitado ao consultório que é só nosso. Nele, o importante são as vivências pessoais, os afetos, as lágrimas e as risadas que compõem as mazelas que nos levaram a nós em primeiro momento. Nessa travessia a nado, fortalecem-se os braços/abraços/abraSUS em direção a formar uma APS forte baseada em médicos bem formados e vínculos estabelecidos. O primeiro emprego e a descoberta do mundo Muito rapidamente, ao cair na realidade do mundo do trabalho, observamos alheias e frustradas o abismo que separa o percurso na residência e as exigências do trabalho na APS. Um dos grandes gargalos encontrados foi a linguagem, no sentido de Wittgenstein: as fronteiras da linguagem ou do conhecimento de alguém é o limite do seu universo. Desta forma, vivenciamos de forma drástica a não compreensão pelas equipes que compõem as ESF na APS da nossa linguagem do cuidar. A diferença entre “atender” e “cuidar” não é puramente uma variação linguística e sim de paradigmática. Para os colegas e gestores, é um espaço de produção morta. A equipe, percebemos, também não recebe afeto; não podem oferecer amor se não sabem como é tê-lo naquele espaço. Nos frustramos com os colegas, que se irritam com os pacientes que padecem, que nos hostilizam no consultório e assim todos preenchemos os espaços de fel. No contexto político brasileiro, desde a criação do SUS há a concepção deliberadamente divulgada de que a APS é para os pobres – e aos pobres, se oferece o mínimo. Vivenciamos situações em que os demais profissionais nos advertiram: para esse público não há lugar para o cuidado; o não cuidar é o que funciona. Chegar cedo, atender muito, não criar problemas. É nesse devir que se forja armadura contra o amargor, no intuito de travar a batalha de tentar legitimar a unidade de saúde como espaço de cura para quem o vive e para quem o frequenta. O porvir da vida em preceptoria e docência A docência e a preceptoria fecham um ciclo: depara-se novamente com os alunos vivenciando o trabalho morto e subestimando a APS. Ao tempo, se busca explorar nesse papel os elementos humanos compreendidos enquanto centrais e mantenedores do cuidar enquanto modelo não configurado por uma determinação fora de si, mas processos redundantemente produtores do próprio tornar-se médico. Formar-se médico com fundamento no labor e nas relações com trabalhadores e usuários do SUS na APS é tarefa prioritária para as autoras. Resultados Foi possível observar a transformação gradual das percepções. A imersão na residência proporcionou um respiro com ressalvas e questões novas. O primeiro emprego revelou desafios, como a falta de compreensão da linguagem do cuidar por parte de colegas e gestores, bem como a percepção de que a APS era relegada a segundo plano, especialmente para os mais vulneráveis. Por fim, a experiência na preceptoria e docência reforçou a importância de formar médicos comprometidos com o cuidado. Conclusão A caminhada se faz na trajetória. Enquanto houver pessoas, haverá a necessidade de transformar a realidade. A jornada desde a graduação até a docência ressaltou a importância de repensar os paradigmas que permeiam a formação, valorizando o cuidado humanizado, a escuta atenta e a construção de vínculos sólidos. Diante dos desafios enfrentados na prática, as autoras destacam a necessidade de resistir às pressões do trabalho mecânico, da burocracia e da falta de reconhecimento, buscando promover uma APS forte e acolhedora.