A Gestão Autônoma da Medicação (GAM) e o espaço geopolítico: drogas e cuidado em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPS AD) em Belém do Pará.

  • Author
  • Vitor Igor Fernandes Ramos
  • Co-authors
  • Károl Veiga Cabral , Alan Pereira Dias
  • Abstract
  • Esse resumo expandido trata da Gestão Autônoma da Medicação (GAM) em um contexto geopolítico de cuidado, demarcando um espaço que precisa ser plural, coletivo e emancipatório. A emancipação, ao pensar o cuidado, deve acontecer no território: um lugar que também é étnico-racial, que possui potências, desafios e singularidades específicas de cada contexto regional. O nascimento da GAM se dá em território estrangeiro, na cidade de Quebéc, Canadá, no início dos anos 90, fim do século XX. Ela foi pensada e moldada por usuários e usuárias com sofrimento psíquico que pudessem sair da ilegalidade de serem apenas objetos em seus tratamentos. Com o processo de manicomialização consolidado no mundo, era necessário criar ferramentas para que indivíduos/objetos se tornassem sujeitos/subjetivos em seus tratamentos. Era necessário considerar a subjetividade e o modo de vida da pessoa em seu tratamento. Com isso, a GAM nasce na aposta em nova forma de cuidado: o cuidado em liberdade e a legalidade da loucura.

    Quando a GAM chega ao Brasil, em 2009, no século XXI, um dos principais desafios foi a sua incorporação em um país que detém vários “brasis” dentro de espaços territoriais diferentes. Dividido em cinco regiões, o Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) possui em sua grande maioria pessoas negras constituindo mais da metade da população brasileira (na classificação do IBGE a raça negra é subdivida em pretos e/ou pardos). E é essa população que majoritariamente utiliza como manutenção e (SUS)tentação de vida, o Sistema Único de Saúde (SUS), um sistema público de saúde que leva em sua formação princípios como universalidade, equidade e integralidade, fundamentais para o funcionamento de uma democracia inclusiva e participativa. Porém, como incluir a GAM em um sistema “universal”, tendo em vista as especificidades do território, não só de contextos socioeconômicos distintos, mas também, de modos de vida, culturas e relações com a terra?

    Desde a falsa abolição da escravidão em 1888, pela princesa Izabel, que datou o “fim” do trabalho de pessoas em condições de escravidão, o Brasil trilhou um caminho em que se apresentava como um país integralmente democrático racial. Porém, o que se viu foram práticas coloniais de suas ações punitivas e medicalizantes do cuidado. Como exemplo, temos a maior concentração de pessoas negras no sistema carcerário, maior concentração de pessoas negras em situação de rua, maior concentração de pessoas negras mortas pela idealização de um mundo sem drogas ao exterminar pessoas através de uma política de “Guerra às Drogas”.

    Tendo em vista o quadro social do Brasil, nos indagamos: como a GAM se insere nessa encruzilhada? Além disso, quais as possibilidades de emancipação e entraves que essa prática apresenta na realidade brasileira, especificamente, em um contexto amazônico? Como pensar a encruzilhada da GAM com um território que pulsa para sobreviver às violências do Estado? A partir da vivência do autor/pesquisador/trabalhador no campo álcool e outras drogas intentamos analisar a implementação da GAM em um serviço de saúde mental que substitui os manicômios físicos: um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPS AD) e refletir acerca das possibilidades terapêuticas e emancipatórias, assim como entraves que se apresentam no contexto em questão.  

    A metodologia deste trabalho se da por uma pesquisa qualitativa através de uma pesquisa intervenção, em alusão a experiência que o autor/pesquisador tem com o grupo desde 2022, além de trabalhador do serviço, como farmacêutico. A realização do Grupo GAM no CAPS AD em Belém ocorre desde maio de 2022, com método de roda e com participação de usuários/as que estão acolhidos/as no serviço, além de servidores e servidoras que exercem trabalho no CAPS AD. A participação é exclusiva para quem é usuário/a do CAPS AD, mas podendo também, participar convidados/as que não estão em tratamento no serviço desde que pactuado com o grupo da roda. É importante demarcar que esse grupo GAM é o 1º a ser realizado na Região Norte do Brasil, no Município de Belém, capital do Pará, fazendo parte do mapa da Rede de Observatório de Práticas de Gestão Autônoma da Medicação, coordenado pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

    Quando a GAM nasce no Canadá por meio de usuários/as que reivindicavam novas formas de cuidado na saúde mental em seus tratamentos, ela foi especificada para ser trabalhada com sujeitos que estivessem em uso de medicações psicotrópicas. Mesmo o Canadá sendo um dos países com um dos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) mais altos do mundo, com uma das economias mais bem estabelecidas e sendo um país classificado como “primeiro mundo”, não escapa de processos que manicomializam sujeitos: métodos de aprisionar, vigiar, controlar e punir. A GAM tem em sua marca de nascença o rompimento com uma Medicina e Psiquiatria medicalizantes, que utilizam os medicamentos como forma de dopar, aprisionar, subjugar ou alienar. Mas na perspectiva da GAM, qualquer medicação antes de prescrita, deve envolver um conversa horizontal do profissional preescritor para sujeito que vai iniciar a medicação. Além disso, o medicamento antes de prescrito deve levar em consideração raça, gênero e sexo do sujeito que vai usar a medicação. Que todo(a) usuário(a) de medicamento deve ser informado dos riscos e benefícios de seu uso. Que todo(a) usuário(a) deva conhecer seus direitos, como previsto no documento Cartas dos Direitos dos Usuários do SUS da Saúde, lançada pelo Ministério da Saúde, em 2006.

    No CAPS AD em Belém, a maioria de sujeitos que participavam das rodas são homens, negros, adultos e em situação de rua. A presença de mulheres que participavam do grupo era mínima, se comparadas ao número de homens. Porém, entre as distinções quantitativas em relação ao gênero e a sexualidade, se estabelece uma consonância entre classe e raça, já que ambos eram pobres, negros e em situação de vulnerabilidade. Por estas características nos interessa neste trabalho destacar a questão da interseccionalidade de raça/cor, gênero e classe social. A GAM deve ser uma rota de cuidado que pense além do medicamento: ter o CAPS AD como um espaço territorial pulsante para se discutir ilegalidades e legalidades, proibições e regulamentações. Estratégias que fomentam cuidados horizontais e plurais. Com a experiência GAM brasileira em território amazônico, é nosso dever referenciar o cuidado com o corpo junto à cidade, junto a nossa cultura, junto a nossa culinária, as nossas tradições e encantarias. Mostrou-se de fundamental importância, com o passar dos meses no grupo GAM operando, que o objetivo não é parar e/ou reduzir o consumo de drogas, mas sim, ajudar a organizar para que cada sujeito seja autônomo/a e crítico em seu tratamento, mantendo a aposta no sujeito e em suas possibilidades de construir projetos de vida.

    Conclui-se que a GAM, ao considerar as especificidades de cada sujeito em relação ao seu corpo, ao seu modo de viver e suas horizontalidades de afeto, é norteadora de um cuidado ético, plural e multirracial. Porém, é necessário também transcender a GAM, tendo em vista as especificidades do território brasileiro, para uma discussão que envolva raça, gênero, sexo, território e, acima de tudo, fortalecer sua articulação com a Redução de Danos (RD), de maneira a construir uma prática emancipatória e de cuidado que faça frente à política hegemônica de “guerra às drogas”.  

  • Keywords
  • CAPS AD, Cuidado, Espaço Geopolítico, Gestão autônoma da medicação, Interseccionalidade
  • Subject Area
  • EIXO 6 – Direito à Saúde e Relações Étnico-Raciais, de Classe, Gênero e Sexualidade
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