Apresentação
Este trabalho é um relato de experiência sobre os atendimentos domiciliares realizados em uma aldeia urbana de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Tal trabalho foi realizado pela equipe multidisciplinar de residentes em saúde da família, com ênfase em saúde da população indígena, da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul – UEMS. Campo Grande possui 24 aldeias urbanas, sendo que a que realizamos esta experiência é uma das mais populosas da capital. A partir disso, temos como intenção apresentar sobre como os atendimentos domiciliares trouxeram a percepção de que poderiam ser utilizados estrategicamente para estabelecimento de vínculo e aproximação entre a unidade de saúde da família e a comunidade indígena do território.
A concepção que trazemos neste trabalho acerca do termo “passeando na aldeia” vem de tentar compreender os atendimentos domiciliares de saúde para além da concepção de trabalho e obrigação. Na primeira análise, o termo pode trazer uma ideia de estar à toa. Porém, analisando a semântica da palavra passear, o termo nos remete à ideia de fluidez do momento, distração com intencionalidade, apreciação e principalmente leveza nas trocas entre os profissionais, as pessoas e o território. Aspecto este que se contraria a prática de um sistema de saúde que ainda está atrelado ao trabalho realizado em quatro paredes de uma sala ou de um consultório.
Ao adentrar à unidade é notório o distanciamento dessa população específica na dinâmica de funcionamento do local e dos serviços de saúde oferecidos. Tal afastamento foi identificado por meio de relatos da equipe e da própria população. Por essa razão que as residentes estabeleceram o objetivo de se fazerem presentes no território para dar início a esse processo de vinculação.
A equipe multidisciplinar foi composta por sete (7) profissionais, sendo duas (2) psicólogas, duas (2) enfermeiras, duas (2) odontólogas e um (1) agente de saúde. Esses atendimentos domiciliares são prioritários especialmente nos casos de impossibilidade de ida à unidade. Entretanto, ao longo das visitas, tivemos contato com outras motivações sobre situações relacionadas a não ida até a unidade, que vão para além dos grupos chave, como por exemplo os acamados.
Algumas situações percebidas foram relacionadas ao horário de trabalho dos moradores e a impossibilidade da comunicação, principalmente para os mais velhos que conservam sua língua indígena. Também existem outros motivos relacionados a impossibilidade de atendimento por demora de agenda e outras informações não conhecidas pela população, principalmente as relacionadas ao funcionamento da unidade. Tais informações que por mais básicas que possam ser consideradas afetam para que de alguma forma a população se afaste da unidade em relação a um atendimento preventivo, buscando a unidade apenas quando já há alguma doença instaurada.
Assim, passear na comunidade, conhecendo os moradores e suas realidades, a partir de um trabalho de orientação e promoção em saúde, possibilita que os profissionais possam identificar e compreender melhor sobre os fatores determinantes e condicionantes de saúde. Além da possibilidade de realização de encaminhamentos necessários para consultas e exames, como, por exemplo, para a odontologia com as avaliações clínicas odontológicas, escovação supervisionada, fornecimento de escovas de dente para as famílias.
Desenvolvimento do trabalho
Este trabalho destaca a necessidade de discutir acerca do desenvolvimento de um trabalho em saúde em que há envolvimento social. Pois, saúde é sinônimo de envolvimento e a promoção à saúde é uma vinculação. Ao negligenciarmos esse envolvimento subjetivo com o outro em seus espaços vivenciais, negamos o acesso à saúde. Além de negarmos a compreensão da saúde e do ser humano de um modo completo, complexo e holístico.
Neste sentido é necessário que para além da conceituação de territorialização enquanto sujeitos que pertencem ao território, a territorialização do sistema único de saúde também diz respeito às especificidades da região e como os profissionais vão atuar a partir da realidade de cada região. Não há a possibilidade de (re)conhecer um território, se os profissionais não colocam o pé no território que cerca a unidade de saúde. Territorialização não é e nem deve ser o atendimento apenas às pessoas de um território. Mas sim a compreensão de como o território é importante para a inserção e pertencimento do ser humano nos contextos de saúde.
Assim, as residentes multiprofissionais, junto ao agente comunitário da área visitada, realizaram as visitas botando o pé no território de forma abrangente para compreendê-lo em sua totalidade. Passear na aldeia para além de um cumprimento de metas ou indicadores relacionados à saúde, também foi uma forma de aproximar a unidade e principalmente as profissionais da população indígena local. Este trabalho de estar nesse território de forma semanal como a população também foi gerado por um receio de ocorrer um engessamento de agendas e demandas que a unidade de saúde muitas vezes exige dos profissionais, o que limita uma atuação somente para a unidade.
Nesse sentido, pensar em ações multiprofissionais que envolvam as três áreas de atuação das residentes, sendo da psicologia, enfermagem e odontologia, mesmo que tenha se tratado de um desafio, foi muito mais como uma troca de saberes. Trocas que foram além das três áreas da saúde, como também em relação aos saberes conhecidos pela própria população e suas visões quanto à saúde e o cuidado.
Resultados
Algo a destacar com tais andanças pela aldeia é que de alguma forma a visão da população em relação a vinculação com a saúde se estreitou. Pois, com a melhoria na comunicação e nas orientações em saúde, mais pessoas indígenas quiseram participar das ações, consultas e exames da própria unidade. Um laço que antes era sentido apenas com o agente comunitário de saúde da área, foi iniciado com as novas profissionais. O que demonstra que ao botar o pé no território também pudemos trilhar um caminho e abertura da população com a unidade básica de saúde.
Mesmo que seja um trabalho que já gera frutos, ainda não está completamente realizado. Pois, essa aproximação numericamente ainda é tímida se comparado a totalidade populacional local. Entretanto, com poucos meses é perceptível uma melhor adesão e proximidade a partir desse trabalho. Nesse sentido, se demonstra quais as práticas que devem ser pensadas e tomadas a partir de então para uma melhoria do envolvimento da população com a unidade e dos profissionais com a população.
Considerações finais
Os passeios realizados na comunidade foram uma nova forma de perceber a importância das visitas domiciliares para além de um olhar saúde e doença. Principalmente, quanto ao sentido de tratar de forma conjunta as pessoas a partir das diversas áreas do saber. Portanto, para além de um princípio de territorialização definido por lei, a prática desse conceito precisa resgatar a necessidade da vinculação e o envolvimento com a população local também. Em um movimento de suporte mútuo e contínuo.
Portanto, para além de considerar as visitas domiciliares um dever ou indicador de atendimento, é preciso se valer desse trabalho também enquanto uma ferramenta de proximidade das pessoas com o direito básico à saúde.