Contextualização: O presente relato de experiência tem como problema central a questão da maternidade nas mulheres em situação de rua. Visa iniciar uma reflexão sobre a proteção à maternidade como direito da mulher, levando em conta a garantia dos direitos da criança e do adolescente dentro das perspectivas que permeiam o cenário das mulheres em situação de rua, correlacionando o direito à convivência familiar e comunitária tanto da criança como também da mãe. Refletir sobre a maternidade e/ou maternagem implica em considerar as histórias de vida e as relações que foram desenvolvidas ao longo dessa trajetória. A fragilidade que envolve o percurso atravessado é resultado do cruzamento de identidades, opressões e desigualdades, inclusive raciais, enquanto marcadores sociais da diferença. Portanto, é necessário desenvolver conhecimentos que considerem a realidade vivenciada nas ruas, partindo da perspectiva de gênero e suas especificidades, a fim de impulsionar a criação de políticas de apoio à maternidade e maternagem nesse contexto. Por conseguinte, é necessário que a equipe de consultório na rua atue de forma intersetorial e coletiva, articulando com dispositivos locais para potencializar o cuidado oferecido, que deve ser realizado de forma integral, envolvendo não só a saúde, mas outros setores, além de estar sensível para o espaço (Território e Redes) onde a vida de quem reside na rua acontece, pensando sobre esse lugar vivo e de como a rede de cuidado está articulada para poder inserir as ações. Trata-se de experiência exitosa de gestante em situação de rua, acompanhada pela equipe de consultório na rua, com desfecho positivo, com mãe e filho juntos, em abrigo de família, com perspectiva de moradia para a família que ocorreu no ano de 2023. Objetivos: Apresentar um relato de experiência sobre o acompanhamento realizado pela equipe do consultório na rua à gestante em situação de rua na zona oeste do município do Rio de Janeiro; discutir sobre a atenção à saúde e à saúde em gestante em situação de rua, os desafios para efetivar os princípios fundamentais do Sistema Único de Saúde e o direito à maternagem segura e amparada com a manutenção de mães e bebês juntos/as, diante do histórico de estigmas e de retirada compulsória dos seus filhos. Resultados: Esperança (nome fictício) é uma mulher negra de 39 anos, com vivência de mais de uma década em situação de rua no município do Rio de Janeiro. Sua trajetória em direção a essa condição está ligada ao uso de substâncias psicoativas, incluindo crack e maconha, seu uso abusivo e consequente rompimentos dos vínculos sociais e familiares. De nove gestações, a primeira foi durante a adolescência, aos 16 anos. Teve dois abortos, tem seis filhos vivos com idades variando entre 24 e 2 anos, que residem com familiares. Está na segunda gestação acompanhada pela equipe de consultório na rua, confirmada às vinte e uma semanas de idade gestacional. Optou por permanecer na rua durante a gestação, alternado entre a vivência nas ruas e a casa de familiares. Manifestou o desejo de maternar a criança, em oposição a gestação anterior. Ela e o parceiro realizam acompanhamento com a equipe do consultório na rua e o cuidado é compartilhado com o Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Segundo filho do casal, ambos mostram-se dispostos a promover proteção e afeto para o filho após o seu nascimento e buscam alternativas para fazê-lo. Partindo desses acompanhamentos, a equipe do consultório na rua realizou articulações em rede, com destaque para a pactuação com a maternidade de referência no território, de que todas as gestantes acompanhadas pela equipe são consideradas de alto risco, minimamente pela alta vulnerabilidade social apresentada. Recém-nascido a termo, sem intercorrências, de parto normal. Diversas reuniões intersetoriais foram realizadas buscando resguardar os direitos da mãe e da criança, que permaneceram juntos, em abrigo conjunto, com perspectiva de moradia para a família. O projeto terapêutico singular de Esperança incluiu avaliações de riscos e danos, ultrassonografias, avaliação do desenvolvimento fetal, entre outros. Pré-natal foi realizado de acordo com o preconizado pelo Ministério da Saúde. Ainda durante a gestação, Esperança decidiu reduzir lentamente o consumo de substâncias psicoativas através da abordagem de redução de danos. Nesse período, foram realizadas diversas reuniões intersetoriais, buscando resguardar os direitos da mãe e da criança. Este, nasceu a termo, de trinta e oito semanas, parto normal, em hospital da rede pública Municipal. Mãe e criança, permaneceram juntos, em abrigo conjunto, realizando aleitamento materno exclusivo, com expectativa de acomodação residencial para a família por meio do programa Lares Cariocas, em articulação com o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS). Considerações finais: A maternidade, pensando na lógica em que uma mulher em situação de rua está inserida, é uma teia que entrelaça diversos fatores, incluindo a violência de gênero, com implicação direta na sua condição humana, enquanto mulher. As questões que envolvem laços familiares rompidos e as sócio-econômicas não impedem a construção do vínculo familiar, afeto e proteção para este filho, após seu nascimento. Ademais este afeto pode ser propulsor no sentido de corroborar com a superação da condição de situação de rua, embora sejam inegáveis a preocupação e angústia pela possibilidade de lhe ser negado o direito de ser mãe. Cabe ressaltar que este contexto envolve, ainda, a possível violação de direitos da criança no que se refere à convivência familiar e comunitária. Diante deste cenário, as mulheres tornam-se alvo de inúmeras violências, como uma gestação não desejada. Entretanto, mesmo as mulheres cujas gestações foram planejadas ou aquelas que desejam permanecer com a criança enfrentam dificuldades para exercer a maternidade. Posto isto, mulheres em situação de rua, comumente são vítimas de uma dupla violência: a gestação compulsória e o risco constante da destituição do poder familiar, deixando clara a fragilidade da cidadania feminina, diante das políticas públicas contemporâneas para essas mulheres. Casos como este relato de experiência, constituem valiosa contribuição no sentido de promover novas e diferentes análises sobre a maternidade/maternagem em contextos de extrema vulnerabilidade. Contribuindo, ainda, no sentido de transformar a visão estigmatizada, e aprimorar as políticas públicas, com vistas a uma assistência à saúde mais abrangente e humanizada no contexto da rua.