A Casa Nazareno Tourinho, ou apenas Casa Rua, como é popularmente chamada, é uma unidade de saúde multiprofissional especializada no atendimento a pessoas em situação de rua, localizada no município de Belém no Estado do Pará. O serviço está em funcionamento desde 2022 e oferece banho, café da manhã e almoço, curativo, vacinação, cuidados para tuberculose, hanseníase, HIV/ Aids, consultas com médicos, atendimento com assistente social, terapeuta ocupacional e psicólogo, além de atividades com um educador físico e com um educador popular.
Partindo de um estágio na Casa Rua, o presente relato de experiência visa discorrer sobre as vivências de uma graduanda de Psicologia junto ao serviço, promovendo intervenções de cunho lúdico e artístico com os usuários do dispositivo. O estágio integra a grade curricular do sétimo semestre do curso de psicologia da Universidade Federal do Pará e contou com uma turma de oito alunos, sob supervisão de uma professora da instituição de ensino. As atividades ocorreram uma vez por semana, durante o segundo semestre de 2023.
O estágio se dividiu em dois eixos, desenvolvidos paralelamente. O primeiro focava na leitura e discussão de textos sobre temas em torno da problemática das drogas, redução de danos e a atenção à saúde de pessoas em vulnerabilidade social e em situação de rua. Tais debates ocorreram dentro do prédio da Casa Rua. O segundo eixo se direcionava para a realização de intervenções com os usuários do serviço, promovendo atividades lúdicas, artísticas e recreativas.
O delineamento das intervenções ficou sob responsabilidade dos estudantes, que deveriam elaborar um plano de trabalho e conduzir a dinâmica, contando com o apoio e orientação da professora responsável. As intervenções ocorreram em uma praça próxima à unidade de saúde, que funciona como ponto de extensão do serviço.
A partir disso, os estudantes realizaram cinco intervenções e desenvolveram, em ordem cronológica: 1) oficina de desenho e pintura; 2) capoeira; 3) brincadeiras e música; 4) modelagem em argila; e 5) jogos de cartas, dominó e fechamento das atividades. Para a realização das intervenções, as pessoas em situação de rua que estavam presentes na praça durante os encontros eram convidadas a participar das atividades, explicitando que a participação era voluntária e que poderiam sair a qualquer momento. O número exato de participantes de cada encontro é impreciso, pois o fluxo de pessoas na praça ia se alterando e algumas pessoas saíam ou chegavam durante a condução da atividade.
Na oficina de desenho e pintura, que foi a primeira atividade conduzida, foram oferecidos aos participantes materiais como papeis, tintas e lápis. A sugestão de tema para orientar a produção artística foi “sonhos”, mas caso preferissem, poderiam optar por outro direcionamento. O grupo manteve-se junto a uma mesa, engajado com a tarefa e dialogando entre si, tanto sobre o que estavam desenhando, quanto sobre suas histórias pessoais.
Na aula de capoeira, percebeu-se que a musicalidade e a corporeidade presentes na atividade aproximaram até mesmo aqueles que não estavam participando diretamente mas que estavam presentes na praça, os quais acompanharam a intervenção com olhares, palmas, etc. A proposta foi muito bem recebida e contou com uma grande adesão. Alguns usuários já haviam praticado a dança/luta anteriormente, o que gerou uma troca de saberes ainda maior entre o grupo.
Já na terceira intervenção, com brincadeiras e músicas, a participação foi menor e as pessoas estavam mais dispersas. É provável que algumas falhas no planejamento e na seleção das atividades possam ter propiciado essa ocorrência, mas mesmo assim serviu como um momento recreativo aos usuários.
Seguidamente, na oficina de modelagem em argila, os resultados se aproximaram aos do primeiro encontro, contando com engajamento dos participantes na produção manual em paralelo com muita comunicação. É importante salientar que essas conversas eram muito proveitosas e o que se objetivava de modo implícito com as atividades, uma vez que eram as principais oportunidades de escuta dos usuários.
No último encontro, vários pequenos grupos com estudantes e usuários foram formados para os jogos e, a partir disso, conseguiu-se desenvolver muito diálogo e trocas entre os participantes. A proximidade entre todos foi muito genuína, resultado da vinculação construída ao longo das semanas. Ao final, fez-se uma roda de conversa para o encerramento das atividades e despedida.
Notou-se que os participantes foram muito receptivos e estavam interessados com as intervenções propostas. Os estudantes conseguiram conhecer um pouco de suas histórias de vida, ouvindo seus interesses, objetivos, sonhos e medos. O espaço de escuta ofertado com as intervenções, de forma não diretiva, não prejudicou sua concretude e, inclusive, percebeu-se que reduziu as barreiras entre alunos e usuários do serviço.
De forma geral, o uso de atividades artísticas e lúdicas facilitou o acesso a população atendida e proporcionou um bom engajamento dos participantes nos encontros, que conseguiram se expressar e ter papel ativo no grupo ali formado. Para além do objetivo explícito das dinâmicas, os encontros promoveram um espaço de acolhimento e construção de vínculos entre estudantes e usuários. Adicionalmente, percebeu-se que convocá-los a produzir algo manualmente ou com o corpo ajudava a presentificar a atenção deles para os encontros, além de aumentar o interesse em participar.
Outrossim, os usuários puderam aproveitar de momentos de recreação e relaxamento. Através das devolutivas sobre as intervenções fornecidas no último encontro, o resultado das atividades foi muito positivo, pois além de terem tido momentos de lazer, as trocas com os alunos os fizeram “se sentirem vistos” (fala de um dos participantes).
Compreende-se, então, que a arte pode ser acionada enquanto ferramenta aliada da psicologia na atuação com a população em situação de rua, possibilitando a expressão da subjetividade, o cuidado em saúde mental e a construção de cidadania dessas pessoas. Nesse sentido, reforça-se a posição da psicologia para além da lógica do paradigma biomédico e da clínica individualizada, ampliando seus espaços e estratégias de atuação para contemplar cenários e pessoas às quais anteriormente não se acessava. Entende-se que o atendimento individual é necessário em muitos casos, mas sozinho é insuficiente.
Cabe ressaltar que as atividades artísticas e recreativas já aconteciam na Casa Rua antes da intervenção do estágio, sendo desenvolvidas principalmente pelo educador popular e pelo educador físico lotados no serviço. Tais atividades são ofertadas para a população atendida enquanto parte da estratégia de redução de danos, visando possibilitar que essas pessoas tenham acesso a atividades prazerosas que sejam alternativas ao uso de álcool e outras drogas.
Ademais, pontua-se que a principal dificuldade encontrada para a realização do estágio foi o acesso a materiais de arte e de lazer a serem utilizados nas intervenções, dos quais a Casa Rua possui limitações financeiras para conseguir adquirir. Em contrapartida, um ponto positivo a ser destacado foi que os alunos mantiveram boa relação com a equipe de profissionais do serviço e receberam apoio a todo momento.
De forma geral, a experiência foi muito positiva e uma oportunidade ímpar para a formação profissional, permitindo aos estudantes a construção de uma nova ótica sobre a população em situação de rua e o papel do psicólogo nesse contexto. Conclui-se, então, que a psicologia precisa ser considerada como integrante das práticas de atenção à saúde para essa população, e que deve buscar outras formas de cuidado além da clínica tradicional para conseguir ampliar o acesso às pessoas vulnerabilizadas.