A TESSITURA DE UM NOVO OLHAR
Vivenciar o campo da saúde mental provém se deparar com estigmas e privações sociais que, por vezes, acabam refletindo em direitos negados e negligenciados aos sujeitos com diagnósticos psiquiátricos. No entanto, para além destes, seus cuidadores e familiares entram em cena ao serem afetados pelo percurso do viver cotidiano e, consequentemente, serem envolvidos no processo de adoecimento decorrente de um movimento histórico-cultural que não se abstém dos rótulos aos quais estruturam sujeitos pela norma.
Nesse teor, o lidar com as possíveis mudanças diante da presença das doenças demandam a articulação de um potencial criativo de si e, sobretudo, daqueles que ocupam esse lugar de cuidar. Com isso, o desejo e as inquietações em investigar como se tece esse lidar dos cuidadores/familiares passam a convocar essa produção, realçando a potência em construir novas experiências que possibilitem um vivenciar, também, de novas perspectivas que não a da solidez de tantos ditos.
À vista disso, a pesquisa se alicerça em um experienciar de cuidado com familiares dos usuários de um Centro de Atenção Psicossocial - CAPS em um município do Rio Grande do Norte - RN a partir da proposta de um grupo terapêutico com esse público. Tendo como objetivo ajudar a compreender como se dão os processos de subjetivação destes que são tidos enquanto referências no fazer cuidado com o outro.
UM CAMINHAR DE (DES)CONSTRUÇÃO
O encontro com o contexto psicossocial passou a se constituir a partir da presença dos profissionais, estudantes, usuários, famílias e aflorou a nossa sensibilidade enquanto pesquisadoras ao observar-sentir as resistências familiares, tal como as dificuldades da equipe em torná-los parte do processo. Advertidas da importância de tê-los nesse trajeto, principalmente pelas afetações do adoecer de seus entes, o cenário nos incitou pela busca de um acompanhamento mais próximo desses processos através da produção de um grupo terapêutico, onde a palavra destes se apresentou enquanto fio condutor na composição de uma voz-lugar de sujeitos de desejo, para além do então situado, sujeitos de cuidado.
Nessa ótica, a cartografia surgiu como alternativa de mobilizar o método em ato, enaltecendo campos de subjetividades ao escapar dos padrões e construir práticas que se inauguram no durante. Nisso, a proposta do grupo se aventurou em encontros quinzenais, na localidade do CAPS, envolvendo tanto familiares/cuidadores quanto membros da equipe, aos quais eram instigados por temas disparadores ou recursos como letras musicais, cartas terapêuticas e recortes/colagens, capazes de provocar reflexões ao passo em que o grupo se fortalecia ao trabalhar com aquilo que emerge.
Esse artifício faz parte da própria natureza cartográfica que, ao acompanhar processos, não se fundamenta em pré-estabelecer metas, mas sim, em viver-da-experiência ao trabalhar a atenção diante das narrativas que compõem novos territórios de existências. Portanto, o estudo passou a caminhar, também, atendendo a uma proposta esquizoanalítica, pois se tratava de uma perspectiva e não de uma metodologia rígida, possibilitando, aos sujeitos envolvidos, afetarem e serem afetados à medida em que revelavam seus infinitos modos de ser – e viver.
A (DES)(-RE)CONSTRUÇÃO EM ATO
O aprofundar nas práticas psicossociais do CAPS de que se fala possibilitou o vivenciar de um contexto para além da teoria, convidando-nos a pensar na emergência de um distanciamento do lugar de suposto saber, enraizado no poder médico, para quem sabe descobrir novas perspectivas através do discurso próprio e legítimo daquele que sofre e ao mesmo tempo é sujeito de cuidado no processo de adoecimento do outro.
Os profissionais da equipe multidisciplinar, por sua vez, apresentavam dificuldades em desenvolver encontros com os familiares, onde seus envolvimentos marcavam o símbolo de um saber-poder, seguindo a lógica foucaultiana que, no percurso, consumia a família pelas obrigatoriedades a serem seguidas, enquanto esta era devorada pelo desejo de saber-fazer com os seus.
Nesse contexto, era o momento de enaltecer as palavras que precisavam ser ditas e deslocar as limitações impostas hierarquicamente, descaracterizando os manejos sólidos, pois envolviam sujeitos de possibilidades distintas. Assim, com a proposta e desenvolvimento do grupo terapêutico, os discursos que antes não tinham lugar, tornavam-se dignos de serem escutados, uma vez que há possibilidade de aproximar-se do desejo através da fala. E assim seguimos.
O grupo estava alicerçado em parâmetros éticos, ao qual resguardava o direito aos membros quanto às questões de sigilo e liberdade de permanência – ou não – aos encontros. A iniciativa caminhava a partir das contribuições esquizoanalíticas, como citado, de modo que a observação empírica e a análise interpretativa dos discursos fomentavam a construção de diários de bordo e promoviam discussões juntamente à equipe com a finalidade de tornar evidente a proposta do método em ato, nutrido pelo desejo em produzir espaços de diálogo.
Em concomitância com os segmentos cartográficos, o encontrar-se com o outro, durante os momentos, era aflorado pelo despedaçar das formas ao tornar-se linhas que, inclusive, são sempre ultrapassadas por outras linhas. E essa composição articulava um processo de abrir as fissuras anteriormente fechadas, como constantemente registrávamos em nossos diários de bordo.
Havia outros momentos em que as palavras não permitiam alcançar, o envolvimento era da ordem do sentir. Certa vez compartilhamos a letra da música “É Preciso Saber Viver” do Titãs, onde recortamos as estrofes e distribuímos aos presentes, os quais liam e expressavam suas inquietações. A possibilidade de a doença dos seus entes ser a pedra que eles buscavam retirar, como se refere na canção, se fez presente nas falas como quem atribuía a si a dor da responsabilização.
A condição de pesquisadoras transformava-se à medida que nos víamos como participantes, alcançando a dor que era presente nos encontros. Tratava-se de algo novo, fluido, desconhecido aos envolvidos e que, diante de suas verdades, passaram a ser autores da construção de um novo cenário. Tal lugar, reunia vozes e valorizava as descobertas, onde passaram a potencializar coragens diante das suas próprias realidades. De forma que a proposta inicial do grupo, em movimento, produzia vida aos participantes, eternizando falas e ofertando espaço para novas elaborações ao elucidar o percurso pelo qual se dá a construção do conhecimento.
À GUISA DE CONCLUSÕES...
Escolhas, caminhos, novos olhares e desconstruções, esses foram os pontos essenciais não somente a serem falados, mas prioritariamente sentidos no decorrer do estudo. Em meio ao desejo de trilhar caminhos no âmbito psicossocial, nos encontramos enquanto cartógrafas, ao nos debruçarmos em uma estrada sem bússola. Eis que era a hora de desnudarmos do cartesianismo e matrizes positivistas, fugindo das vertentes enrijecidas ao nos propor a ampliar os espaços de fala, pois era a produção de afetos que abrigava o processo de des(-re)construção dos envolvidos.
Uma oferta para produção de uma voz-lugar aos familiares e cuidadores surgiu como um marco transformador, uma vez que estes estão imersos no ambiente adoecedor e são passíveis de tamanhas afetações. E foi partir disso em que as formas se tornaram linhas em construção, onde os momentos em grupo abriram as portas para que os desejos ocultos viessem à superfície, manifestando, assim, a essência intrínseca de cada sujeito através de suas palavras-atos capazes de subverter as impossibilidades.