ESCRITAS INICIAIS
Uma apresentação
A luta antimanicomial surge com a proposta de resgatar corpos que foram estilhaçados pelas longas internações em manicômios, com a proposta de um tratamento pautado na proteção e no cuidado em liberdade. Em contramão às práticas normativas, a luta busca possibilitar novas existências em meio a uma sociedade normativa, através de práticas que promovem a constante (re)invenção de um fazer, pois enxerga o sujeito como singular e protagonista de sua história.
Nessa compreensão, o manicômio é a representação da exclusão, do controle e da violência marcado por um social que estabelece uma norma a ser seguida, e tudo o que escapa dessa norma necessita ser capturado para ser consertado e remodelado para caber nos moldes sociais. A lógica do manicômio segue a premissa do aprisionamento, sendo ele físico ou simbólico, pautada em um discurso estruturante ao não abrir espaço para as diferenças, tendo como objetivo o silenciamento do sujeito que perturba o seu meio. Assim, ao aprisionar o indivíduo em um diagnóstico psiquiátrico o desloca do lugar de sujeito para o lugar de doente, utilizando-se de tratamentos que silenciam o seu sintoma ao passo em que os arrancam a oportunidade de criação de novas formas de acontecer no mundo.
O artifício de criar ações nos demanda investimentos e, sobretudo, manejos inovadores no lidar com as circunstâncias cotidianas que nos causam. A arte, por sua vez, se apresenta enquanto possibilidade no âmbito terapêutico-criativo, mas a inserção artística no campo do trabalho ainda se acentua permeada de resistências. Até porque, nesse cenário, o fazer-compor arte tem a característica de imprevisibilidade, de estar no campo do ilógico e por conta disso causar estranhamento, fecundando um movimento de desconstrução de saberes que traz consigo a possibilidade de construção de um lugar para além da ordem ao se apresentar como uma brecha para que o sujeito escape e reconstrua o seu lugar social.
A perspectiva da utilização da arte enquanto recurso terapêutico propõe que, na expressão do sofrimento psíquico, o sujeito construa uma possibilidade ao reconhecer-se para além do seu quadro diagnóstico. Por conseguinte, as escritas propostas neste estudo objetivam-se em discutir os encadeamentos da luta antimanicomial no processo – criativo – capaz de remontar corpos no mundo, alçados pela intenção de resgatar/produzir inumeráveis estados do ser, ampliando os olhares de cuidado que tanto carecem os serviços em saúde mental.
COMPOSIÇÕES DO CAMINHAR
Dos arranjos metodológicos
Pensar a luta antimanicomial enquanto uma arte-ofício no âmbito do cuidado em saúde mental é repensar aquilo que vem enquanto ordem, seja esta social/cultural/institucional. Vindo a ser, nesse modo, uma tentativa de subversão ao modelo médico da dialética saúde e doença, ao se distanciar de um fazer limitante que consagra as prescrições medicamentosas enquanto desfechos possíveis de enfrentamento.
A esse segmento, subscrever nomenclaturas dos manuais de psicopatologias àquilo que elas são: nomes feitos para tentar compreender a multiplicidade que é o ser humano em suas dimensões, usurpa a ideia de uma história de vida por trás de cada palavra, negando-a. E com isso, possibilitar a entrada da arte a esse lugar de caminho possível, desencobrindo sujeitos enclausurados por práticas estruturantes, oferta-lhes a oportunidade de serem artesãos na construção de espaços de existências pelo desenho, pela pintura, pela colagem, pela costura.
Portanto, a produção se ergue a partir de uma metodologia qualitativa ao trabalhar com interlocuções das autoras, estas nutridas em vivências e arcabouços teóricos que se aproximam principalmente do método Niseano, inaugurado por Nise da Silveira. Realçando, a esse ponto, a indispensável proposta de um trabalho que se articula com os sujeitos a partir de encontros alicerçados pelas escutas, observações, escritas e toda uma caminhada que aguça o nosso trabalho atencional frente as narrativas que compõe a arte de viver ao elaborar novas maneiras de lidar.
OS ARTE-OFÍCIOS DA LUTA POR UMA SOCIEDADE SEM MANICÔMIOS
Corpos e(m) arte, uma transformação
A dita luta por uma sociedade sem manicômios toma força a partir das críticas fervorosas a nível mundial acerca do fazer psiquiátrico que se desdobrava nos isolamentos e internações compulsórias como tratamento aos sujeitos em adoecimento psíquico. Nesse percorrer, iniciam as discussões sobre a emergência de um cuidado mais humanizado diante das práticas violentas de exclusão radical da sociedade e que, para tal articulação terem efeitos, tornava-se preciso desmistificar o lugar da “loucura”, apoiando-se nas elaborações de novas leis e nas transformações dos espaços e práticas manicomiais.
Nas tratativas socioculturais, algo de um corpo se encobre partir da instauração de um ideal de normalidade, sendo este atualmente configurado por uma tentativa de fazer-cuidado aos modos tradicionalistas que, ao longo do percurso, se aclara um trajeto de distanciamentos e resistências dos envolvidos. Por outro lado, este fazer quando imbuído do viés artístico solicita ao corpo um movimento, um ato-de-arte, sendo ele manifestado das mais variadas formas, oportunizando o revelar dos traços singulares ao margear (des)cobertas e possíveis libertações.
Desta forma, em contraponto à lógica de uma sociedade que busca a todo custo modelar o indivíduo seguindo a ilusão de uma sociedade igualitária entre sociedades diversas, a arte desloca e faz surgir existências múltiplas provocando essa quebra do ideal normalizador, ao trazer a criatividade como maneira de resgate de uma sociedade plural. Assim, o trabalho com a arte é tomado como um ato, propriamente dito, uma maneira de agir, um protesto diante dos discursos médicos que enxergam o corpo a partir dos traços biológicos, instaurando um apagamento de marcas e histórias que muito falam sobre o curso de um corpo que adoece.
Nesse entendimento, nos aproximamos das contribuições de Nise da Silveira, ao qual passa a se dirigir aos ditos pacientes/doentes como artistas. Diante das práticas arcaicas e violentas, a autora passa a potencializar a carga da palavra dita, do silêncio constante, do corpo curvado, do desenho colorido e daqueles sem cor, do trato com a pintura que fala sobre pintar a alma e de, em especial, uma proximidade de corpos que produzem afetos.
A produção de um saber outro descortina um saber-lugar que atribui ao sujeito a posição de narrador da sua própria história, ao passo em que se produz poder sobre o seu próprio corpo, (re)nascendo ao se permitir externar algo que aflora dentro de si. Cada encontro como oportunidade de liberdade e de criação, revelando as emoções do lidar e do remontar corpos – antes em esquecimento – no auxílio da produção de um novo mundo.
TERMIN-AÇÕES
Considerações que não cessam
As articulações em saúde mental demandam um trabalho para além do que nos é posto, do trato com o sujeito em adoecimento como algo que não se institui aos modos distanciais. Caminhar com a arte da palavra, a arte do encontro, a arte da expressão, seja ela qual for, estabelece o início de uma ruptura que clamam os processos em fazer-cuidado com o outro, ao reconhecer o autoritarismo como entrave fundante das desigualdades e opressões.
Habitamos um cenário que desmonta corpos ao endereçá-los a variados modos de aprisionamentos e, a partir disso, testemunhamos a vivacidade tão atual do método Niseano, onde as livres criações nos proporcionam bagagens de trabalho e produções de autonomias. Clareando, por consequência, a chance de um percurso de remonte que eleva a luta antimanicomial a um ofício de somar o senso crítico junto a sensibilidade enquanto acompanhantes nesse enfrentamento.