O presente trabalho é um desdobramento da implementação do projeto de pesquisa “O mal-estar do laço social e a busca pelo bem viver”, cujo principal objetivo é possibilitar um espaço para o discurso das pessoas sobre o processo de sofrimento e identificar conjuntamente estratégias de enfrentamento deste. Neste resumo, relataremos a experiência das rodas de conversa direcionada aos idosos de uma Unidade Básica de Saúde (UBS), localizada no norte do país, com a finalidade de compreender sofrimentos e estratégias ligados ao processo de envelhecimento. Cabe destacar que as rodas foram realizadas no turno disponibilizado pela equipe da unidade de saúde, junto ao grupo de idosos que já acontece há muitos anos na UBS, coordenado por profissionais do Serviço Social e da Psicologia. Desta forma, os participantes já possuíam um bom vínculo entre si e com os profissionais locais.
Nossa tarefa inicial era tentar criar este vínculo de confiança conosco e explicar as etapas da pesquisa buscando a adesão dos idosos. Outro desafio era encaixar a pesquisa em uma manhã já repleta de atividades propostas pela unidade: iniciada às 07h com um grupo de controle do hiperdia realizado pela enfermagem com recomendações e solicitações de exames e preenchimento da Caderneta do Idoso e seguida de uma atividade de dança realizada pela educadora física com início previsto para às 08h30, sendo uma atividade bastante apreciada pelos idosos. A proposta da roda de conversa foi direcionada então para às 9h da manhã. Como os encontros duravam 1h:45 minutos, muitas vezes nos vimos pressionados pelo tempo, pois a maioria dos idosos são ativos, desempenhando funções em suas casas (almoço, cuidado de crianças) e até laborais como forma de complementar a renda.
Diante disso, as rodas de conversa ocorreram em quatro encontros semanais, sempre nas quintas-feiras no turno da manhã. Para cada encontro, foram pensadas dinâmicas na perspectiva de ajudar a liberar a narrativa dos participantes. No 1º encontro houveram a apresentação do projeto aos idosos, assinatura do TCLE e proposta de uma “representação de si” através do desenho e a identificação dos principais produtores de sofrimento, registrados de maneira escrita, debatidos e posteriormente pendurados no “varal dos sofrimentos”. No 2º encontro ocorreu uma discussão das principais estratégias de enfrentamento quanto a esses sofrimentos. Já no 3º encontro foi apresentado um curta-metragem animado, disponível no Youtube, sob o título “Alike”, como recurso visual para discussão acerca das redes de apoio percebidas pelos idosos. Por fim, no 4º encontro, houve a devolutiva e o encerramento da pesquisa com este grupo.
Do grande grupo de idosos, 8 pessoas participaram das rodas, dos quais 7 eram mulheres, com idade entre 60 a 70 anos. O perfil da população acolhida no grupo é de idosos ativos, em acompanhamento no programa hiperdia, frequentadores assíduos da unidade de serviço. A partir das narrativas trazidas, construiu-se categorias temáticas vinculadas ao sofrimento, são estas: relações interpessoais; percepção de saúde; luto advindo de perdas reais e simbólicas; questões sociais, econômicas e de gênero. Destacamos o sofrimento ligado a questões sociais como fome, desemprego, violências (contra idosos, mulheres e crianças) e humilhações e as questões referentes as perdas pelo luto, perdas de saúde e econômicas. O grupo mostrou-se bastante crítico a forma como vivemos em sociedade e demonstraram muita inconformidade com as injustiças e desigualdades sociais. Também a perda de entes queridos ou mesmo a perda da saúde ou das condições laborais compareceram, mas não com a mesma ênfase que as mazelas sociais.
Acerca das estratégias de enfrentamento, salientamos seu caráter singular e, também, coletivo, ou seja, uma mesma estratégia compareceu como podendo ser eficaz para um indivíduo e não para outro, ao passo que uma mesma estratégia também pode ser eficaz para mais de um indivíduo. Diante disso, a espiritualidade como estratégia de enfrentamento se fez presente na maioria das falas. Além disso, para os idosos a família e a roda de conversa mostraram-se enquanto significativas estratégias e rede de apoio. Identificaram-se, também, atividades recreativas como a dança e o canto, passeios e viagens, mas também o isolamento e a expressão da raiva nos discursos dos idosos.
A estratégia da espiritualidade foi a mais mencionada entre os idosos escutados nas rodas de conversa. Percebemos que a maioria, frente as adversidades e inconformidades com o rumo do mundo, coloca a religião, sendo a figura de Deus, mencionada como a destinatária das expectativas de melhora e de solução de qualquer mazela. O que pode revelar um certo descrédito da população idosa em outras instâncias do estado e da sociedade como forma de amenizar seus sofrimentos, incluindo inclusive a família neste rol. Apesar do exposto, constatou-se a importância das rodas de conversa como dispositivo de promoção de saúde na fala dos idosos, assim como a ida no grupo de idosos das quintas-feiras.
A grande maioria relata sentir-se muito acolhido e confiar na equipe e no espaço do grupo das quintas-feiras promovido pela UBS. Tanto que o grupo funciona há anos e o vínculo e a adesão é perceptível na relação dos idosos com a equipe. Adoram o momento da dança, mas também valorizam os cuidados da enfermagem. Da mesma forma, as rodas de conversa foram referidas por eles como espaços prazerosos e de confiança.
O retorno dos idosos foi positivo em relação a abertura de um espaço de escuta e diálogo. Através deste, conferiu-se uma maior aproximação com os usuários e suas realidades, na medida em que as rodas de conversa constituíram um espaço de falas acerca de temas não contemplados pelo modelo biomédico. Os cuidados ofertados na UBS ainda estão muito centrados no aspecto orgânico e tecnicista, embora a equipe que implementa o programa do hiperdia e da dança se esforce em ampliar o diálogo para além do corpo. A entrada da roda de conversa, como uma das modalidades de cuidado, parece ter contribuído também para reforçar entre os trabalhadores a necessidade da palavra e da escuta dos grupos acompanhados, o que se revelou na adesão dos idosos ao falaram abertamente de suas dores e prazeres.
A consolidação desse espaço de escuta na roda de conversa, através do componente de grupalidade, mostraram-se imprescindíveis para o desenvolvimento do bem-estar dos idosos, além de possibilitar uma noção ampliada de saúde, que escape à lógica da “ausência de doença”. Portanto, ao considerarmos aspectos ligados ao sofrimento e estratégias utilizadas, foi possível pôr em destaque o usuário, reconhecendo-lhe enquanto sujeito ativo, necessário à construção de um modelo de cuidado descentralizado, regionalizado e integral, o qual se aproxime e parta de suas vivências, colocando-os como protagonistas do seu processo de cuidado.