A crise humanitária e sanitarista na Terra Indígena Yanomami (TIY) é produto da omissão do Governo Federal frente ao avanço do garimpo ilegal e do desmonte na atenção à saúde dos povos indígenas, cenário esse que se agravou com a pandemia da Covid-19. Os habitantes do território enfrentam conflitos armados, exposição ao mercúrio, desnutrição severa, malária e outras doenças, resultado de décadas de violação aos seus direitos.
Dada a gravidade da situação, foi declarada como Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), através da Portaria GM/MS n.° 28, de 20 de janeiro de 2023 . Diante disso, o presente trabalho visa apresentar possíveis contribuições do campo da psicologia das emergências e desastres para atuar na resposta e reconstrução desse contexto de crise, considerando as especificidades ético-políticas junto aos povos indígenas.
Como opção metodológica de investigação, utilizou-se da pesquisa bibliográfica de caráter exploratório. Para tal, o estudo fez uso das Referências Técnicas para atuação de psicólogas (os) na Gestão Integral de Riscos, Emergências e Desastres, e da Nota de posicionamento sobre a crise humanitária Yanomami, ambos do Conselho Federal de Psicologia (CFP).
Inicialmente, pontua-se que o conceito de desastre pode ser compreendido como uma situação que excede a capacidade de resposta de uma comunidade ou sociedade, causando danos humanos, materiais ou ambientais, além de prejuízos econômicos e sociais. Eventos adversos de diversas naturezas podem provocá-lo, e variam em magnitude a depender das circunstâncias física, social e ambiental que o envolvem. Para entender e atuar frente a um dado desastre, é imprescindível, assim, considerar as dimensões sócio-político-culturais de vulnerabilidade, capacidade e exposição do território em que ocorrem.
A atuação e enfrentamento aos desastres ocorre por meio da Gestão Integral de Riscos, Emergências e Desastres, a qual exige um processo complexo e articulado de antecipação, planejamento e preparação para resposta a situações adversas. A Psicologia brasileira, especialmente nos últimos anos, vem se inserindo nesse campo de atuação, integrando-se com diferentes atores para promover linhas de cuidados de Saúde Mental e Atenção Psicossocial frente a desastres e crises humanitárias.
A crise humanitária na Terra Indígena Yanomami se trata da culminância de uma série de fatores que se caracterizam como um desmonte sistemático dos mecanismos e redes de atenção, segurança e proteção a tal população, além dos processos históricos que refletem a manutenção da lógica colonial das instituições de poder brasileiras. Medidas deliberadas do governo Bolsonaro de caráter anti-indígena, que se intensificaram com a pandemia da Covid-19, consistiam na omissão de atendimento básico em saúde, o que inviabilizou a contenção dos efeitos da pandemia no território. Paralelamente, tem-se o avanço do garimpo ilegal sobre as terras Yanomami, que entre 2016 e 2020 apresentou índices crescentes, após a desativação das bases de proteção nos Rios Uraricoera e Mucajaí pelo exército, principal via de acesso aos territórios. Como consequência, a população indígena passou a ter maiores índices de exposição a doenças infectocontagiosas, além de problemas de saúde relacionados ao contato com o mercúrio e da violência armada e de ataques às comunidades.
A negligência governamental com as demandas da população Yanomami e com as denúncias de violação dos direitos humanos evidencia o projeto de necropolítica neoliberal que submete os povos indígenas a condições de extrema vulnerabilidade. Destaca-se que as consequências da crise humanitária, em especial as doenças provocadas pelo contato com o garimpo, afetam principalmente os anciões e anciãs da comunidade, sujeitos elementares transmissores da cultura dessa população, e as crianças, que são as novas gerações de seu grupo étnico. Esse extermínio das partes fragilizadas da comunidade Yanomami se apresenta enquanto um artifício de eliminação da memória e da tradição dessa coletividade, afetando diretamente a perpetuação da identidade da Pessoa Indígena nesse contexto.
Sob essa perspectiva, a psicologia deve inserir-se para contribuir na articulação de meios de enfrentamentos a essa realidade, partindo de um protagonismo das populações indígenas para combater a aculturação e apagamento identitário Yanomami que essa política de extermínio objetiva alcançar. A atuação nesse contexto deve ser pautada pela interculturalidade e a interdisciplinaridade, centralizando a participação da comunidade na maneira como o combate a esses fenômenos deve se realizar. Para isso, deve-se considerar o papel fundamental da construção coletiva da reivindicação de direitos, de modo que haja o diálogo com a comunidade e a escuta de suas demandas para que elas orientem a articulação dos recursos necessários.
É de extrema importância que não sejam reproduzidas lógicas colonialistas, em que o profissional chega aos territórios com intervenções pré-estabelecidas que, muitas vezes, não estão alinhadas com as necessidades da comunidade no que diz respeito aos seus costumes, crenças e atravessamentos culturais e territoriais. As ciências psicológicas ainda ocupam esse lugar em muitos aspectos, principalmente pela influência do modelo médico assistencial privatista ainda presente em suas áreas de atuação, que pode causar estranhamento ao saber indígena. Por isso, é fundamental o papel da psicologia para promover a escuta ativa da população, a fim de reconhecer e dar voz à sua subjetividade e inseri-la na agenda política de enfrentamento a crises. Além disso, deve-se construir meios de intervenção de maneira criativa e dialógica, a partir da experiência vivida nesse contexto e do trabalho em coletivo com a comunidade.
Para além de utilizar de seus recursos como instrumentos de reafirmação da identidade cultural Yanomami e de seus direitos, a psicologia possui papel fundamental no processo de reconhecimento, validação e acolhimento do sofrimento psíquico causado por essa crise. É papel do profissional da psicologia compor a rede de apoio a esses sujeitos e, principalmente, ao coletivo, no intuito de auxiliar o restabelecimento da comunidade à sua funcionalidade durante e após a crise, considerando as consequências psicológicas oriundas do momento em questão, que impactam diretamente na vida da população. Cabe à psicologia articular-se com a população no quesito de apresentar e compor os dispositivos e recursos possíveis de resistência e prevenção de novas crises, compreendendo, porém, a autonomia e o protagonismo da comunidade na elaboração desses artifícios.
É preciso que a psicologia brasileira esteja politicamente engajada e se posicione a favor das demandas apresentadas por essa população, no intuito de fornecer recursos à gestão própria dessa comunidade para a prevenção e combate aos desastres em série que a acometem. A psicologia deve agir nesse debate, por considerar que a saúde humana integral depende também de recursos físicos, comunitários, financeiros e políticos. E também, a contribuição técnico-científica na elaboração de políticas públicas que estejam alinhadas a esses princípios é uma via possível para essa causa.
Essa pesquisa possibilitou apresentar, de forma geral, possíveis contribuições e cuidados ético-políticos para a atuação de psicólogos(as) no enfrentamento da crise humanitária Yanomami, enfatizando o respeito ao protagonismo das populações indígenas e do saber local. A partir disso, se evidencia a importância de atuar nessa crise para além do cuidado ao bem-estar físico, considerando as outras dimensões violadas do sujeito e sua necessidade de autodeterminação para reconstrução da comunidade que habita.
Por fim, ressalta-se que a psicologia precisa olhar de forma ampliada para a complexidade dos desastres e crises humanitárias, observando as demandas da coletividade atingida e atuando de modo a não individualizar o sofrimento. Ademais, sugere-se o aprofundamento de estudos que orientem a construção de estratégias e planos de ação no âmbito da psicologia de emergências e desastres.