Apresentação: Visando integrar ensino, pesquisa, serviço e gestão, o Programa Multicampi Saúde promove um estágio intensivo e imersivo aos estudantes dos cursos de saúde da Universidade Federal do Pará na Atenção Básica do Sistema Único de Saúde, com ênfase na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança, por meio da capacitação e utilização da Caderneta da Criança. Nesse contexto, este trabalho visa relatar a experiência de cinco estagiários de psicologia no referido programa, nas atividades desenvolvidas em unidades da Estratégia Saúde da Família (ESF) no município de Belém, destacando as contribuições da psicologia para o cuidado à criança e sua família. Desenvolvimento: Cada estudante foi alocado em uma unidade diferente, acompanhado de estudantes de outros cursos, compondo, assim, uma equipe multiprofissional que acompanhava a rotina do serviço sob a supervisão de uma preceptora da área da enfermagem. Dessa forma, os estagiários participaram de ações de educação em saúde; reuniões da equipe multiprofissional; visitas domiciliares; consultas de enfermagem ao recém nascido, à criança, à gestante, ao adulto e ao idoso; consulta de pré-natal; além de acompanhar atendimentos do Programa Hiperdia, controle da tuberculose e da hanseníase, conhecendo a rotina da unidade e todos os seus programas. Além disso, cada estagiário/a também deveria acompanhar uma criança que necessitava de cuidados especiais (chamada de criança guia) e sua família, desenvolvendo e executando um plano de intervenção que atendesse as queixas e demandas identificadas pela equipe. Resultados: Para a seleção da família e criança guia dos/as discentes de psicologia, utilizou-se como critério a identificação de demandas psicossociais, que envolvam a necessidade de acompanhamento psicológico e/ou de assistência social. Utilizaremos nomes fictícios para nos referir aos usuários. Daniel, primeira criança, de 8 anos, foi atendido em uma consulta de enfermagem de rotina. Entretanto, sua avó, que estava como acompanhante, demandou acolhimento e escuta por parte da enfermeira e do discente de psicologia, que a escutaram na mesma sala enquanto o resto da equipe realizava uma avaliação de desenvolvimento. No acolhimento psicológico, ela relatou que a mãe da criança faleceu há 3 anos, vítima de homicídio, supostamente relacionado ao envolvimento com uso e tráfico de drogas, além de que o pai é uma pessoa privada de liberdade, portanto, não possui contato com o filho. Essa usuária expressou sofrimento mental e grande preocupação com a criança e seus irmãos, o que levou a equipe a agendar uma visita domiciliar para avaliar um possível encaminhamento para a assistente social e a referenciá-lo para o psicólogo da Unidade Municipal de Saúde, considerando a demanda de luto. Isabela, a segunda criança, de 8 anos, foi escolhida devido à necessidade de acompanhamento diante do quadro de tuberculose. Segundo a equipe da unidade, a mãe estava negligenciando o cuidado da infante, pois não estava comparecendo à unidade para buscar o medicamento. Apesar da dificuldade para realizar o primeiro contato com a família, foi possível perceber que a família estava em um território de risco, região endêmica para vários tipos de doenças, principalmente dengue e tuberculose. Além disso, após o primeiro contato, foi observado que a família de Isabela é atravessada por diversas questões sociais, como uso abusivo de drogas, relações familiares instáveis e vulnerabilidade econômica. Nesse viés, a discente realizou alguns diálogos com a infante e a tia da criança, visto que esta foi a única familiar a demonstrar interesse contínuo pelas intervenções da equipe de saúde. Após as avaliações, Isabela apresentou melhoras de seu quadro de tuberculose e demonstrou ser uma criança bastante ativa e que possui um fator protetor muito importante: o brincar, prática que foi incentivada pela equipe de saúde. Por fim, apesar da estudante não conseguir dialogar com toda a família da criança acerca do assunto, foram indicados serviços gratuitos que poderiam possibilitar, aos familiares, acesso ao trabalho e a outras fontes de significado, como cursos, esportes e lazer. Por sua vez, a terceira criança acompanhada foi João Carlos, um menino de 5 anos recém-diagnosticado com o Transtorno do Espectro Autista (TEA). As demandas trazidas pela família à equipe de saúde se relacionam com seu diagnóstico, a saber: dificuldades com higiene pessoal, solicitação de atividades neuroestimulantes e apresentação de comportamentos auto e hetero lesivos. Diante disso, foram realizadas as seguintes intervenções: às necessidades de resolução longínqua, a criança foi encaminhada para realizar acompanhamento com equipe multiprofissional no Centro Integrado de Inclusão e Reabilitação; já para começar a trabalhar as duas primeiras questões, foram desenvolvidas duas tecnologias, quais sejam, o Jogo da Memória Saudável (adaptado de outro estudo, visando trabalhar a higiene e saúde em pessoas com TEA) e também se fez uso de quebra-cabeças, por estimular habilidades como atenção concentrada e orientação visuoespacial, indicadas como deficitárias no relato da mãe. Por fim, quarta criança se trata de uma menina de 9 anos, Beatriz, que mora com os avós maternos, a mãe e duas irmãs mais novas. A agente comunitária de saúde responsável em acompanhar essa família indicou que a equipe multiprofissional da Unidade fizesse uma visita domiciliar, considerando o tempo que a família não frequentava a ESF. Os avós, que cuidam da criança enquanto a mãe trabalha, relatam que Beatriz é triste e pouco social; na escola tem apenas uma amiga e sua professora já alertou a família sobre ser uma menina muito reclusa, triste e até mesmo não brincar. Os cuidadores relatam que tudo começou desde a separação dos seus genitores. Beatriz sentiu um grande impacto pelo distanciamento do pai e pedia para que a família se estabelecesse novamente. Foi relatado que, nesse período, Beatriz passou por uma profissional que indicou o acompanhamento psicológico, mas não houve prosseguimento. Diante da demanda de sofrimento de Beatriz em relação ao luto pela separação dos pais, que estava provocando grande impacto em sua vida, optou-se juntamente com a enfermeira que seu caso fosse referenciado para a equipe de psicologia; entretanto, para fazer o acolhimento da criança, a estudante montou um plano de ação que consistia em fazer a leitura junto com a criança de um livro infantil que aborda com delicadeza a separação dos pais, objetivando acolher seu sofrimento e oportunizar que ela expusesse o seu olhar sobre a situação, mostrando-lhe os pontos positivos, mas sem menosprezar sua dor. Considerações finais: Essas experiências proporcionaram uma visão abrangente e aprofundada do funcionamento e organização da Atenção Básica em Saúde, especialmente no contexto do cuidado à criança e a sua família. Na experiência dos casos relatados, é possível evidenciar a complexidade biopsicossocial das demandas de saúde da população alvo dessa política pública. No que se refere a saúde da criança, os estagiários de psicologia contribuíram, como relatado, em demandas de luto, relações interpessoais, adesão ao tratamento e transtornos do desenvolvimento, considerando a realidade de vida de cada família e adaptando suas estratégias de cuidado às necessidades de cada criança. Porém, ressaltam-se também os limites das intervenções, como a dificuldade de acesso aos serviços de saúde e encaminhamento, a comunicação difícil com os responsáveis, as condições socioeconômicas desfavoráveis e a dicotomia entre garantia de acesso e adesão ao tratamento. Conclui-se que a atuação da psicologia na saúde pública vai além da clínica tradicional, do psicodiagnóstico e da psicopatologia, constituindo-se como uma clínica ampliada, psicossocial.