O debate acerca da saúde mental dos estudantes universitários vem se expandido nos últimos anos, principalmente após a pandemia da Covid-19, que escancarou uma problemática já antiga, mas ainda pouco discutida. Por essa razão, pesquisar sobre essa questão é urgente para compreender o que está acontecendo e formular estratégias de cuidado para a comunidade acadêmica, fortalecendo assim a permanência e o bem viver estudantis. Nesse sentido, o presente trabalho visa debater sobre a formação de grupalidades e de amizades que vêm sendo utilizadas por estudantes universitários enquanto estratégias de enfrentamento ao sofrimento no ambiente acadêmico.
Esse é um dos resultados preliminares da pesquisa “O mal-estar no laço social e a busca pelo bem viver”, realizada desde o segundo semestre de 2023 sobre processos de sofrimento e estratégias utilizadas no cotidiano entre discentes dos cursos da Universidade Federal do Pará (UFPA). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da UFPA sob parecer de N? 6.186.452 e junto ao Núcleo de Educação Permanente da Secretaria Municipal de Saúde.
A partir da metodologia etnográfica, o estudo conduz rodas de conversas com os estudantes interessados em compartilhar suas narrativas sobre o que vêm produzindo o sofrimento dito comum no ambiente universitário, quais as reais condições de enfrentamento e pensar conjuntamente estratégias para a busca de um bem viver. O objetivo é criar espaço para a socialização dessas experiências e potencializar as vozes dos alunos. A proposta de roda de conversa como modelo de trabalho já é uma aposta no favorecimento de espaços para a grupalidade, para o diálogo e para a construção de um comum.
A princípio, é imprescindível caracterizar o perfil dos estudantes da UFPA onde os dados estão sendo coletados, por conta da relevância para os resultados da pesquisa. A instituição é a maior da Amazônia e do Norte do país, com uma maioria de estudantes mulheres cisgênero, autodeclarados pretos, pardos e indígenas, e que acessaram o ensino superior por meio das políticas de ação afirmativa. Além disso, a maior parte dos alunos tem baixa renda familiar e estão em situação de vulnerabilidade, conforme dados da Associação dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).
Tendo em vista esse contexto, é preciso considerar que o recorte de participantes da pesquisa é diverso e composto por minorias, e socialmente essas experiências de subjetivação são marcadas pelas desigualdades de raça, classe, gênero e sexualidade. Sabe-se que a produção de sofrimento é inerente à condição humana e pode afetar a qualquer um, mas é importante que essas categorias sejam apreendidas enquanto ferramentas analíticas para observar: se e como, podem reverberar no processo de sofrimento dos estudantes escutados.
Os resultados parciais já analisados constataram que a principal causa de sofrimento entre os estudantes ouvidos é a sobrecarga advinda da quantidade e da intensidade de tarefas que a vida acadêmica impõe. Diante desse cenário, a estratégia mais utilizada pelos discentes para enfrentar o mal-estar são as redes de apoio familiar e/ou de suporte mútuo entre colegas. Os alunos com vínculos familiares e/ou de rede de apoio ampliada fragilizados relataram a necessidade de construir, buscando apoio em outras pessoas.
A família aparece como principal elemento de apoio no discurso dos alunos, porém, muitos são oriundos do interior e encontram-se isolados na capital. Não podendo contar com a presença constante dos familiares e dos antigos amigos, o sentimento de pertencimento a um grupo construído na universidade parece funcionar como ferramenta importante no enfrentamento dos desafios do percurso acadêmico e do afastamento do território de origem. As longas horas que os estudantes passam na universidade fazem com que mesmo aqueles cuja família reside na capital recorram a construção de uma rede de apoio no ambiente universitário, elegendo um grupo de amigos como núcleo principal de suporte.
Nesse ínterim, a necessidade então da grupalidade fica explícita como uma estratégia buscada pela maioria para fazer frente aos desafios diários, que sozinhos percebem não dar conta. Na vivência cotidiana do espaço universitário os alunos se apoiam uns nos outros para lidar com a sobrecarga, os medos e as apreensões da experiência acadêmica. Alguns grupos de colegas se colocam como rede de apoio, muitas vezes ocupando este lugar de família ampliada. Reflete-se que a partir da vivência de dificuldades semelhantes do cotidiano, os discentes podem reconhecer um sofrimento que não é individual, mas comum entre a comunidade acadêmica. Por meio do diálogo e do suporte mútuo, o peso da rotina, das muitas aulas, provas, trabalhos, entre outros, não são vividos isoladamente e sim apoiados no coletivo.
Entretanto, a vivência de espaços coletivos na universidade fica comumente restrita às salas de aula e às obrigações acadêmicas, onde estruturalmente se incentiva a competitividade entre alunos e a busca pelo máximo desempenho. Esses ambientes funcionam dentro da lógica da meritocracia e são repletos de exigências e pressões que, conforme relato dos estudantes, provocam grande medo de falhar e corroboram com o sofrimento. Destaca-se que grande parte desses discentes são os primeiros de suas famílias a conseguirem ingressar em uma universidade pública, sendo uma grande conquista, mas que também resulta no medo de não atender as expectativas que lhes foram investidas.
A configuração dos espaços acadêmicos, em muitos casos, segue o modelo neoliberal vigente, que exacerba o individualismo e a competitividade, e faz com que nas relações humanas o outro ocupe o lugar de inimigo. Então, o que está posto é uma luta solitária e contra os demais pela excelência. Essa lógica de competição foi percebida pela maioria dos participantes da pesquisa, e se revela nos discursos comparativos escutados tanto em sala de aula quanto na fala de familiares. Em contrapartida, a estratégia de formar grupalidades no ambiente universitário para enfrentar o sofrimento cotidiano abre espaço para considerar o outro e incluí-lo na construção de um bem-viver coletivo. Essa postura contra-hegemônica rompe com as noções neoliberalistas.
Resgatando a noção foucaultiana, a amizade é um exercício político e de reflexão filosófica, pois pelo esforço para compreender e aceitar o outro enquanto diferente, possibilita experimentar novas formas de pensar, agir e se relacionar. Assim, é também uma via para construir uma nova forma de sociabilidade mais preocupada com o bem comum e menos produtora de sofrimento. Ademais, ao unir e empoderar os atores sociais, a amizade pode potencializar reivindicações por melhores condições de existência e transformações ético-políticas.
Conforme constatado com as devolutivas sobre as rodas de conversa, todos os discentes escutados afirmaram terem se sentido acolhidos e mais confiantes após a participação, as trocas e os relatos compartilhados, fazem com que eles percebam que outras pessoas sofrem dos mesmos problemas e que não estão sozinhos nessa. Mas para muitos, o espaço acadêmico é lugar de exclusão que os mantém isolados e à margem dos laços. É preciso ter cautela e observar quem, ou quais grupos sociais não estão tendo a sensação de pertencimento investigando os possíveis efeitos dos preconceitos de raça, classe, gênero e sexualidade para produção da marginalização.
Em conclusão, surge a necessidade de promover espaços para a vivência comum dentro da universidade e fomentar a construção de vínculos entre os discentes. É essencial que as instituições de ensino superior se responsabilizem pela criação de estratégias que integrem essa comunidade ainda tão fragmentada e viabilizem a formação de grupalidades na busca pelo bem viver.