O trabalho discute os resultados preliminares de um dos territórios de uma pesquisa-ação participativa intitulada Promoção e Proteção da Saúde Mental e do Bem-Viver Amazônidas, junto a experiências grupais desenvolvidas no âmbito da atenção primária em saúde e da ação comunitária da capital paraense. O território em questão é uma comunidade vinculada à cultura de matriz africana. Cabe mencionar que o Conselho Nacional de Saúde, a partir da Resolução 715/2023, reconhece as casas de cultura de matriz africana como “[...] equipamentos promotores de saúde e cura complementares do SUS, no processo de promoção da saúde e 1ª porta de entrada para os que mais precisavam e de espaço de cura para o desequilíbrio mental, psíquico, social, alimentar [...]”. A referida investigação global foi aprovada pelo Parecer Consubstanciado nº 6.245.985/2023 do Comitê de Ética Pesquisa do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Pará (UFPA) e suas ações nesse específico território tem o apoio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da UFPA.
Trataremos, então, especificamente sobre as experiências de saúde mental e bem-viver em um terreiro de Umbanda e Ifá em Belém do Pará. Utilizamos a concepção de saúde mental preconizada pela Organização Mundial da Saúde (2022), definida como um estado de bem-estar onde o indivíduo atinge seu potencial, supera o estresse, trabalha de forma produtiva e contribui para a comunidade, é reconhecida como um direito fundamental. No entanto, a falta de priorização, subfinanciamento e distribuição desigual dos serviços no Brasil, principalmente a partir das políticas adotadas a partir de 2016, têm restringido a expansão dos serviços de saúde mental, deixando as políticas nesse campo desatualizadas frente ao aumento das queixas relacionadas ao sofrimento psíquico. Sabemos que, ainda em consonância com o que é trazido pela Organização Mundial da Saúde (2022), quase 90% das pessoas afetadas por transtornos mentais não recebem tratamento adequado, destacando a necessidade de políticas acessíveis e sensíveis às especificidades de cada grupo. Rubén Oscar Ferro (2010), em seu estudo sobre saúde mental e poder, já nos apontava que, embora 80% dos problemas de saúde mental sejam tratáveis na atenção primária em saúde e/ou na ação comunitária, a esmagadora maioria do investimento dos países nesse campo está na rede especializada, produzindo barreiras de acesso, desatenção, bem como agravamento e cronificação dos quadros.
Diante desses desafios, comunidades têm recorrido a práticas comunitárias, como os terreiros de religiões de matriz africana, que historicamente servem como espaços de acolhimento e resistência em todo o território nacional, muitas vezes para grupos marginalizados. Esses espaços promovem um forte sentimento de comunidade, conhecido como égbe, incorporando rituais com uso de ervas medicinais e práticas de consulta com entidades, desafiando os valores eurocêntricos e propondo uma abordagem decolonial à saúde mental e ao cuidado, voltadas à coletividade, harmonia com o meio ambiente e resgate ancestral, o que nos remete à filosofia de bem-viver, tal como nos ensina Alberto Acosta (2016).
Nesse contexto, a pesquisa tem como objetivo geral investigar e desenvolver ações colaborativas que promovem a saúde mental e o bem-viver em um terreiro localizado em Belém do Pará. Isso inclui a observação participante, bem como a mapeamento e análise das práticas existentes. Busca, assim, promover reflexões sobre as mesmas entre os membros do terreiro, bem como entre os profissionais de saúde do serviço de atenção primária do território sanitário ao qual está incluído o terreiro. Objetiva também fortalecer essas práticas e identificar desafios na implementação de ações de saúde mental nesses espaços, reconhecendo e valorizando as tradições culturais e religiosas dos terreiros, contribuindo para políticas e práticas de saúde mais inclusivas e sensíveis à diversidade cultural. Utilizando a metodologia de pesquisa-ação participativa, o estudo começou com a fase exploratória, buscando um terreiro no território e estabelecendo contato, para em seguida identificar uma problemática coletiva e analisar caminhos de intervenção, a partir da troca com os atores sociais do território, visando desenvolver ações colaborativas de saúde àquela comunidade de maneira conjunta a seus participantes. O critério inicial de escolha da casa de matriz africana utilizou a territorialidade dos campos de investigação da pesquisa global, ou seja, os territórios adstritos a três Unidades Básicas de Saúde da capital, atendendo respectivamente a uma comunidade ribeirinha, a uma comunidade ribeirinha urbana e a uma comunidade urbana periférica. Logo, a escolha e identificação do terreiro com o qual iniciamos o trabalho, buscou respeitar a ancestralidade que atravessa os membros do grupo de pesquisa que dirigiriam o projeto nesse campo, desde já utilizando nossa própria experiência como categoria de análise, em uma necessária postura autoetnográfica (Belloc, 2021). Ao contrário de uma falsa e impossível neutralidade, tomamos nossa própria experiência como parte integrante e imprescindível do trabalho investigativo.
Ao entrar em contato com o terreiro escolhido, já foi possível identificar práticas comunitárias de promoção de saúde e bem-viver. Atividades comunitárias são comuns no território, sendo elas a distribuição de agasalhos e alimento à população de rua, a recepção de serviços multidisciplinares de saúde, como consulta médica, vacinação e testagem de infecções sexualmente transmissíveis, além do acolhimento promovido na própria constituição da égbe. Há, também, ao lado do terreiro em si, um centro cultural atrelado a ele, que promove atividades com as crianças da comunidade e funciona como escola de educação infantil. Dentre as atividades propostas no centro cultural, destacam-se as aulas de capoeira que ocorrem semanalmente. Tal atividade promove o resgate ancestral, além de fortalecerem a coletividade e a prática do esporte, fatores que se relacionam diretamente à saúde mental. Dessa forma, já pudemos realizar, inicialmente, o mapeamento e análise dessas práticas, compreendendo suas especificidades especialmente quanto à promoção de saúde voltadas para o trabalho de resgate ancestral. Nos encaminhamos para maior aproximação com o território, participando de trabalhos abertos e fechados, atividades comunitárias e reuniões com a família de santo, visando proceder com as atividades norteadoras para o cumprimento dos demais objetivos, voltados à discussão, reflexão e apoio dessas práticas, além da identificação dos desafios enfrentados pela comunidade. Portanto, a pesquisa busca contribuir significativamente para o campo da saúde mental na região amazônica, valorizando as tradições culturais e religiosas presentes nos terreiros e promovendo ações colaborativas para o bem-estar e a qualidade de vida das comunidades envolvidas, considerando sua diversidade e os saberes tradicionais.