Este estudo é uma iniciativa abrangente e colaborativa para analisar, desenvolver e promover práticas de promoção e proteção da saúde mental e do bem-viver nas comunidades amazônicas, especialmente focadas na região de Belém/PA. Com um enfoque especial na atenção primária em saúde e na ação comunitária, busca-se apoiar o desenvolvimento de estratégias eficazes e sustentáveis, promovendo a reflexão e a cooperação entre os trabalhadores da saúde, atores sociais e os próprios habitantes dessas comunidades. O objetivo é produzir conhecimentos significativos sobre como melhorar o cuidado integral e a qualidade de vida, com um foco específico na promoção e proteção do bem-viver das mulheres da comunidade ribeirinha do Igarapé Piriquitaquara, na Ilha do Combu, visando aprimorar continuamente sua condição de vida e, com base nisso, possibilitar a independência grupal desse coletivo, fortalecendo sua capacidade de autogestão e empoderamento.
Desenvolvimento do trabalho: Sobre a perspectiva do bem-viver, essas interações foram enfatizadas destacando a importância do compartilhamento de conhecimentos. O estudo sublinha a necessidade de desconstruir o conceito hegemônico de saúde mental que coloniza as experiências de padecimento, produzindo processos de saúde-adoecimento-atenção pela monocultura do modelo biomédico. Ao mesmo tempo, é preciso questionar o paradigma eurocêntrico colonial das formas de viver a vida, visando promover tecnologias sociais que proporcionam uma compreensão mais profunda e contextualizada. No quesito metodologia a pesquisa está sendo conduzida como um processo dinâmico em consonância com o conceito de pesquisa-ação que também aborda questões relevantes no campo da saúde coletiva e se implica uma articulação entre a saúde mental e o bem-viver, com foco nas experiências coletivas desenvolvidas no âmbito da atenção primária em saúde e na ação comunitária.
Nesse sentido, os encontros semanais são marcados por trocas significativas de saberes. Saberes que se compõem, entrecruzam e se transformam para produzir aberturas emancipatórias. Para este presente trabalho centraremos em um dos aspectos trazidos para o grupo das violências e vulnerabilizações enfrentadas pelas mulheres da comunidade no seu cotidiano. Em seus relatos percebe-se a influência de um processo violento de colonização neoliberal das formas ribeirinhas de viver a vida, que passa também pela gentrificação das águas e dos seus espaços de moradia e de trabalho. A ilha é atualmente um local muito procurado para atividades de lazer, sendo um dos principais atrativos do turismo na capital paraense. De forma gradativa em seu início, acerca de 20 anos, e aceleradamente nos últimos 2 anos, empreendimentos de lazer (gastronomia, hospedagem, balneários) são abertos nas beiras do rio, dos canais e dos igarapés, já não mais dirigidos por famílias ribeirinhas e sim por empresários da cidade. A própria circulação da população ribeirinha pelas águas, principalmente nos finais de semana, é impedida ou, como mínimo, uma disputa desigual frente as grandes lanchas e velozes motos aquáticas. Há relatos desde a diversão sádica em molhar ou mesmo tentar afundar pequenas embarcações, até ameaças a mão armada. Uma violência que não se circunscreve somente às águas, também sobe nas pontes e nas casas ribeirinhas que mantêm esses espaços de lazer e gastronomia junto às suas moradias. E acompanhando essa violenta gentrificação está pari passu uma outra mais sutil, mas com efeitos tão ou mais avassaladores. Trata-se da redução e folclorização dos modelos explicativos e práticas culturais tradicionais ribeirinhos afro-indígenas amazônidas, envolvendo não somente os processos de saúde-adoecimento-atenção, como também as formas de viver a vida.
Grada Kilomba em seu livro “Memórias da Plantação” nos ensina sobre a máscara do silenciamento. Inicialmente usada para impedir que os escravos comessem cana-de-açúcar ou outros alimentos do plantio, a máscara adquiriu outro significado ao representar o colonialismo como um todo. Partindo dessa perspectiva, observa-se que, apesar de estarmos no século XXI, tais situações ainda as colocam no lugar do silenciamento e da submissão, privando-as da capacidade de se defenderem, privando inclusive dos modelos explicativos e práticas de cuidado tradicionais.
No livro "Futuro Ancestral", Ailton Krenak faz uma análise profunda do tratamento inadequado às vias fluviais por parte das grandes cidades, descrevendo como elas passam por cima dos rios de maneira desrespeitosa. Essa narrativa desperta um olhar para a maneira como a urbanização pode sufocar territórios. Na comunidade do Piriquitaquara, pode-se observar a conectividade dos moradores com sua ancestralidade, sendo o rio uma forte carga de histórias e vivências para a população deste local. Em relatos, essa questão com a natureza, o território e as águas está quase sempre presente. O rio é movimento, é força e também é resistência, mesmo quando tentado ser contido. As mulheres desse território são como os rios que atravessam suas vidas, enfrentando desafios diante da urbanização e gentrificação. Assim como os rios simbolizam movimento e resistência, essas mulheres também são protagonistas de suas histórias, mesmo diante das violências enfrentadas.
Muitas vezes essa violência vem com a roupagem do progresso, pois esse turismo tem aspectos positivos e negativos, tal como elas relatam. Por um lado, há o retorno financeiro que pode empoderar as mulheres a empreenderem, mas por outro lado, é referida uma enorme preocupação sobre até que ponto isso é realmente benéfico, tendo em vista todos os efeitos sobre o território e as formas de viver a vida. Além disso, essas mulheres destacam a crescente influência da mídia nesse contexto. Enquanto a atividade turística traz consigo reconhecimento e visibilidade para a região, é necessário ponderar sobre o efeito colateral que ela acarreta, como a invasão da privacidade dos moradores locais. Observa-se que muitos turistas, ávidos por registrar suas experiências, acabam tirando fotos das casas e das pessoas como se estivessem num zoológico, sem obter permissão prévia, o que tem gerado debates acalorados e divisões dentro da própria comunidade.
A partir do trabalho do grupo de cuidados coletivos produzido a partir dessa pesquisa e batizado como “Papo Bom” elas vão buscando formas de equacionar tais aspectos para a proteção e promoção de bem-viver, exercendo o direito à florestania: uma constituição ética, estética e política que conta com a floresta e seus saberes ancestrais no horizonte de uma equação igualitária aos saberes urbanos, acadêmicos e científicos.
Considerações finais: Este estudo possibilita a reflexão e valiosos aprendizados sobre a Saúde Mental e Bem-Viver, destacando a importância de relações interpessoais e trocas de saberes que os encontros proporcionam. Embora tenhamos enfrentado algumas limitações, como a dificuldade de conciliar um transporte fixo para as participantes, bem como para o grupo de pesquisa, o que representa um desafio significativo na organização e execução das atividades, os resultados obtidos, na avaliação das participantes, são relevantes para a compreensão de impactos relacionados ao bem-viver e imprescindíveis para a sua produção. Em última análise, este trabalho, construído com a comunidade do Piriquitaquara a partir do protagonismo das mulheres, contribui significativamente para o campo da psicologia e da saúde mental coletiva, fornecendo uma base sólida para investigações futuras e aprimorando a compreensão a respeito do bem-viver e da decolonialidade.