Este trabalho é resultado da linha de pesquisa sobre câncer da boca, aprovada pelo Edital do Programa de Desenvolvimento de Projetos Aplicados, parceria da Prefeitura Municipal de Niterói-RJ, Universidade Federal Fluminense (UFF) e Fundação Euclides da Cunha. A escolha pelo câncer de boca como um evento traçador, se deve a sua incidência, seriedade do dano causado e possibilidade de atuação para minimizar a gravidade. Os estudos demonstram que os indivíduos mais acometidos são tabagistas, etilistas crônicos, do sexo masculino, com idade acima dos 50 anos, com baixa renda e escolaridade. O fator socioeconômico pode ser um obstáculo para o acesso aos serviços de saúde e faz com que indivíduos mais vulneráveis tenham um diagnóstico e tratamento tardio, o que aumenta a morbimortalidade da doença. O objetivo deste projeto é descrever o perfil dos usuários regulados para tratamento de câncer de boca e analisar o acesso e o cuidado recebido nos serviços de referência para oncologia. Estudo quanti-qualitativo de natureza exploratória tendo como participantes residentes do município de Niterói-RJ, diagnosticados com neoplasia de lábio e cavidade oral e regulados para tratamento pelo Sistema Estadual de Regulação (SER), entre os anos de 2018 e 2022. A identificação dos participantes foi feita através da lista de encaminhamento para “Oncologia Ambulatório de 1ª vez - Cirurgia de Cabeça e Pescoço”, com hipótese diagnóstica referente a CID equivalente ao intervalo entre C00 a C10. Foram utilizados dados secundários, coletados diretamente no SER, para análise de perfil dos usuários e entrevistas com os participantes para investigar o cuidado recebido. O contato foi realizado por meio de telefone e as entrevistas presenciais utilizaram um roteiro semiestruturado, sendo todas gravadas e transcritas. Foi utilizada a estatística descritiva para as variáveis demográficas e a Análise Temática para a identificação das categorias de análise: acesso à consulta no ambulatório de cabeça e pescoço e; dos obstáculos e facilidades para o tratamento e reabilitação. Foram identificados 98 usuários, que atendiam os critérios de inclusão, sendo a maioria do sexo masculino (74,5%), com idades acima dos 60 anos (69,4%). Destes, 66 (67,3%) foram contatados com sucesso, sendo que 37 (56,1%) recusaram ou não não confirmaram o agendamento da entrevista. Esse percentual incluiu casos de usuários em situação de cuidados paliativos, em que o familiar se encontrava sobrecarregado, e os casos de óbitos entre os contatados (n=27; 40,9%). Dos 29 que aceitaram participar das entrevistas, a maioria tinha idade acima dos 60 anos (72,3%), mas com predomínio do sexo feminino (58,7%). Houve uma distribuição igual entre a raça/cor branca e preta/parda (48,2%). A renda desses participantes era menor que três salários mínimos e mais da metade (62%) eram os provedores principais do lar, com a aposentadoria sendo fonte principal da renda. O uso do tabaco foi registrado por 76% dos participantes, enquanto o álcool foi reportado por 65,4%. A primeira suspeita sobre a lesão foi levantada pelo próprio participante (n=18). Em 62% dos casos o participante acessou um serviço público e, independente do tipo de sistema de saúde (público ou particular), o profissional mais procurado foi por dentista (58,7%). O exame diagnóstico (biópsia e histopatológico) foi realizado em 38% dos casos no setor privado (n=11), seguido da Clínica de Estomatologia da Faculdade de Odontologia da UFF (31%). Após a confirmação diagnóstica e a solicitação de vaga no SER, os participantes foram regulados para consulta no Ambulatório de Oncologia/Cabeça e Pescoço, com relatos que indicam que o tempo de espera esteve dentro da previsão legal, ou seja, até 60 dias. Entretanto, todos relataram apreensão e insegurança quanto à pouca transparência em relação ao acompanhamento do tempo para a marcação, face a tensão e o medo da progressão da doença. Preocupação legítima, pois tratamentos de câncer de cabeça e pescoço iniciados em um tempo inferior a 30 dias, elevam a sobrevida dos pacientes, bem como acarretam menor risco de óbito. Em relação ao cuidado recebido nos centros de tratamento oncológico, as queixas mais frequentes envolvem o tempo de espera entre o horário agendado e a consulta médica; longas filas; exaustão e insensibilidade por parte da recepção dos serviços: “toda vez que eu ia [no hospital] eu perdia uma manhã inteira esperando”; “tinha que ir muito cedo e não era pra uma coisa rápida, era pra uma coisa que você ia esperar mais sei lá quanto tempo, entendeu?”; “chega lá todo debilitado, o cara chega morto… e ele encontra uma recepção não condizente com o estado dele, falta gentileza, talvez elas não tenham tempo…”; “e lá dentro, na espera, lá dentro nas primeiras consultas era muito penosa, tá entendendo?” Pessoas com câncer tendem a se sentir com medo e com uma percepção negativa quanto ao futuro e estudos mostram que as chances de adesão ao tratamento aumentam quando o acolhimento e o tratamento são mais empáticos, bem como uma concorrem para melhores desfechos de saúde. Após o primeiro atendimento com o especialista, o obstáculo apontado foi o da demora para realizar e receber os resultados dos exames para o pré-operatório, como tomografia e radiografia, convertendo-se em atraso para o início do tratamento. De acordo com um dos participantes: “Demora muito pra fazer exame. Para fazer os exames é que demora. O tratamento em si não demora, pô. Só os exames que demora, porque pra fazer os exames você pena. (...) Aí às vezes o médico pede o negócio e tem um mês pra consulta e aí não tem exames pra levar.” Muitos pacientes relatam ter recorrido aos serviços privados para complementar o público e agilizar o tratamento, o que coloca em risco os princípios da universalidade e da equidade do SUS, criando um filtro econômico para o acesso e aprofundando as desigualdades sociais. Dificuldades de acesso também foram mencionadas em relação a procedimentos complementares e de reabilitação, como à terapia com laser de baixa intensidade e à prótese dentária: “eu deveria fazer o tratamento com o laser paralelo à radio e a quimio, [...] a gente tentava marcar as consultas e não conseguia, foi muito difícil”; "Y, nós não temos equipamento aqui para isso (prótese), você tem que procurar uma ajuda fora". As experiências em relação a qualidade do atendimento, relatadas pelos participantes, não foram homogêneas: “graças a Deus que aquilo ali é muito bom, muito bem estruturado o [hospital] né, muito é… avançado, muito moderno aquele hospital (...) Eu se fosse fazer uma avaliação geral, eu diria que eu fui tratado muito bem acima da média né”; “eu vou dizer pra você que eu, não desejo o [hospital] pra ninguém nesse mundo e nem na face da terra, porque lá dentro se você não for e não aparecer um anjo no seu caminho, você está entregue às baratas”. O estudo do cuidado recebido nos serviços de oncologia indica a necessidade de melhor organização do sistema de atendimento e de uma política de educação permanente para qualificar a comunicação profissional-paciente/familiar. Apesar de ter produzido um conhecimento circunscrito à experiência assistencial de usuários com câncer de boca de Niterói, é possível que os resultados representem a realidade daqueles que utilizam esses mesmos serviços, pois são referências regionais para o tratamento do câncer.