Desde a implementação da Política de Atenção Básica, em 2006, é reconhecida a necessidade da promoção da equidade racial como um princípio da universalização do Sistema Único de Saúde (SUS). Visando humanizar e contemplar demandas específicas no atendimento de determinadas populações, como a negra, tornou-se necessário também a criação de uma política pública que respaldasse ações eficazes para estes público, sendo a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra - PNSIPN (2017) outro componente primordial para a integralidade do atendimento neste campo. Criada em 2006 e implementada a partir de 2009, a PNSIPN ressalta que a população negra compõe a maior parte dos usuários do SUS. No que se refere ao cotidiano do trabalho em saúde, o racismo institucional acarreta a discriminação na hora do atendimento, seja no cuidado de doenças que acometem majoritariamente a população negra como a anemia falciforme e a hipertensão, a maior demora do atendimento tendo em vista a crença de que negros são mais resistentes à dor ou precisam de menor analgesia, bem como o diagnóstico tardio também são a expressão institucional da violência racial infiltrada nos serviços. Entretanto, o racismo institucional não se restringe à atuação profissional mas se expressa conjuntamente no funcionamento das instituições de saúde através de modos de rotinização, coordenação e orientação absorvidos e normalizados nos comportamentos das pessoas que compõem este setor (Almeida, 2018; Werneck, 2016). Neste caso, o racismo institucional não impacta apenas no atendimento aos usuários/as, mas também nas relações de trabalho entre os/as profissionais de saúde, pois a desigualdade racial se expressa nas ocupações e áreas com ensino superior (IBGE, 2021). Principalmente nas profissões de recorte biomédico que possuem maior status social, como a medicina e a odontologia, desde a formação acadêmica há influência das barreiras raciais nos currículos de graduação, no ingresso e permanência de pessoas negras em tais cursos (Cândido et al., 2019; Friedrich, Coelho, Sanches, 2022), o mesmo ocorre no campo da enfermagem e farmácia (Mato, 2019; Pereira et al., 2021). O racismo científico teve grande influência no advento das escolas médicas enquanto profissão regulamentada e estudada nas universidades, refletindo tanto na concepção do processo saúde- doença quanto na maior valorização social de vidas brancas em detrimento dos demais segmentos raciais da população brasileira (Santos, 2018; Andrade Júnio, 2016). A branquitude, caracterizada por Cida Bento (2002; 2022) como um rol de privilégios coletivos regulados pela raça, opera a partir de crenças, valores, ideais, normas e símbolos baseados na supremacia branca, isto é, na suposta superioridade dos significados de ser branco/a no Brasil. A branquitude se dá ainda a partir de um pacto coletivo entre pessoas brancas para a reprodução, imposição e manutenção destes privilégios, fortalecendo, conscientemente ou não, o racismo institucional (Bento, 2002; 2022). No campo do trabalho este pacto pode se dar como presunção de incompetência quando pessoas negras ocupam posições que exigem pouca escolaridade ou se manifestar a partir do boicote de chefias negras partindo da premissa de que são arrogantes ou excessivamente revoltadas contra o racismo (Bento, 2002). Pensando nisso, está sendo desenvolvida uma pesquisa qualitativa no doutorado em Psicologia com o objetivo de compreender e discutir a subjetividade social e a branquitude no trabalho em saúde presente em uma Unidade Básica de Saúde da Família da região sul do país, a partir dos pressupostos da Epistemologia Qualitativa e Teoria da Subjetividade. O estudo da subjetividade social possibilita compreender o encontro entre a vivência social e a coletiva sintetizado nas representações sociais hegemônicas, nas formas habituais de pensamento, nos códigos morais e emocionais das relações humanas, além dos mitos, sistemas normativos formais, expectativas e discursos dominantes (Martínez & González Rey, 2017). Para isso, esta pesquisa tem acontecido por meio de dois estudos concomitantes: uma análise documental do perfil institucional da/os profissionais médicos/as, odontólogos/as, farmacêuticos/as e enfermeiros/as, e a realização de espaços conversacionais individuais no formato de entrevista com roteiro semi- estruturado na UBS pesquisada. Também está sendo elaborado um diário de campo a partir do contato semanal fora das entrevistas durante visitas nesta unidade. Os resultados preliminares apontam a ausência massiva de profissionais negros de medicina e odontologia nos quadros da instituição da qual a UBS pesquisada faz parte, apenas 3,2% e 3,8% respectivamente, a maior parte dos profissionais negros contratados via concurso público ocupam cargos de nível médio administrativo ou técnico; não foi identificado nenhum/a profissional negro/a em nenhuma das áreas pesquisadas dentro equipe, apenas nas áreas técnicas, administrativas ou de segurança. Tal ausência, articulada com os relatos de parte da equipe e modos de relação identificados durante as visitas, indica uma cultura de subalternização na relação entre as/os profissionais médicos e odontólogos e o restante da equipe. A impessoalidade, a pressa no trato com os/as colegas, e a indisponibilidade do contato em ambientes compartilhados foram identificados nesses dois grupos de profissionais. A pesquisa de campo também permitiu identificar que, de modo geral dentro da UBS, predomina a ausência de reflexão sobre a composição racial da equipe, reduzindo a compreensão sobre a temática racial à discriminação direta considerada ausente no cotidiano de trabalho na percepção de boa parte das profissionais pesquisadas. Dessa forma, percebe-se, até o momento, que há consonância entre a institucionalidade e parte da UBS pesquisada no que se refere à manutenção do privilégio racial principalmente na área médica e odontológica, sendo a invisibilização dos privilégios e a ausência de responsabilização nas relações raciais fortes são indicadores da branquitude e seus pactos no cotidiano de trabalho investigado. Foi notado que as profissionais participantes carecem de orientações da instituição de saúde a qual a UBS pertence, havendo maior abordagem da temática das relações raciais em seminários e workshops nos hospitais da rede. Nesse sentido, os resultados obtidos sugerem que o impacto da branquitude no trabalho em saúde influencia as dinâmicas interprofissionais uma vez que os cargos mais embranquecidos passam a ter uma demarcação relacional naturalizada dentro do trabalho em equipe, algo que pode tanto influenciar a implementação da PNSIPN como a entrada e permanência de profissionais negros nas UBS’s. Adicionalmente, visto que a maioria dos profissionais pesquisados são mulheres, cabe também considerar de que maneira o gênero se insere na dinâmica de produção do privilégio racial, participando não somente como maioria quantitativa, mas como um elo regulador das relações entre profissionais brancas e o trabalho neste setor da saúde pública.