Introdução
A conquista da saúde bucal não é uma responsabilidade individual, sendo influenciada por diversos determinantes em combinação complexa, dentre os quais estão fatores biológicos individuais, estilos de vida, suporte social/comunitário, condições de vida/de trabalho e condições socioeconômicas, culturais e ambientais mais amplas. Questões socioeconômicas e culturais influenciam no acesso a serviços odontológicos, na qualidade de informações sobre saúde bucal e nos hábitos alimentares e de higiene bucal da população.
O acesso aos serviços odontológicos é necessário tanto para o recebimento de cuidados bucais quanto para a obtenção de informações sobre saúde bucal, as quais possibilitam a adoção de hábitos mais saudáveis. Acesso pressupõe não restringir a porta de entrada aos serviços de saúde e envolve dimensões relativas às pessoas e às características dos serviços, sendo importante para o estabelecimento do primeiro contato e para a longitudinalidade do cuidado.
Apesar de comprovada a importância da saúde bucal, acredita-se que parcela da população brasileira ainda se encontra à margem dessas questões, a exemplo dos trabalhadores da limpeza urbana, que atuam nos serviços de coleta de resíduos, na limpeza e na conservação de áreas públicas, também denominados de “coletores de resíduos”, “coletores de lixo”, “garis” e “varredores de rua”. Esses indivíduos, que têm a integridade significativamente exigida, se adaptam aos riscos da profissão enfrentando dificuldades para garantir adequadas condições de vida, de trabalho e de cidadania.
Muitas vezes estigmatizados ou invisibilizados pela sociedade, compõem um grupo no qual a saúde - especialmente na sua dimensão bucal – pode não ser prioridade. Pressupõe-se que as jornadas extensas ou noturnas funcionem como dificultadores para o autocuidado bucal e como barreiras adicionais para o acesso a serviços odontológicos, incluindo os ofertados pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Considerando o exposto, este estudo teve como objetivo descrever as características de acesso e de utilização de serviços odontológicos de trabalhadores da limpeza urbana pública da cidade de Niterói/RJ.
Método
Tratou-se de estudo descritivo transversal realizado na Companhia de Limpeza Urbana de Niterói/RJ (CLIN), uma empresa de sociedade mista criada em 1989, subordinada à Prefeitura, que atua na limpeza urbana e destinação final de cerca de 765 toneladas diárias de resíduos sólidos produzidos no município.
A população elegível foi formada pelos trabalhadores da empresa municipal, tendo como critério de inclusão os funcionários maiores de 18 anos e que atuavam como trabalhadores nos serviços de coleta de resíduos, na limpeza e na conservação de áreas públicas. Foram excluídos os trabalhadores que atuavam em âmbito administrativo, em férias, afastados por motivo de doença e não localizados para convite após duas tentativas. Foi utilizada uma amostra inicial de conveniência de 114 participantes, de três distritos, os quais foram alocados de acordo com critérios da CLIN.
Os dados foram coletados por meio de questionário autopreenchido contendo perguntas de múltipla escolha adaptadas e criadas para a investigação, envolvendo variáveis demográficas, socioeconômicas e de acesso/utilização de serviços odontológicos. O instrumento foi previamente testado com quatro trabalhadores administrativos que não preenchiam os critérios de inclusão. As variáveis foram transcritas em um banco de dados do Programa Microsoft Excel® e os dados foram analisados por meio de frequência absoluta e relativa.
Todos os preceitos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos foram respeitados. O protocolo de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina UFF sob o CAAE Nº 68307423.3.0000.5243.
Resultados
A pesquisa contou com a participação de trabalhadores que atuavam nas unidades localizadas nos bairros Centro e Gragoatá. Dos 114 trabalhadores (100%), 14 estavam de férias (12,3%) e 39 recusaram-se a participar do estudo (34,2%), de modo que a pesquisa contou com as respostas de 61 funcionários (taxa de resposta de 53,5%).
No que diz respeito ao perfil sociodemográfico, verificou-se que 31 trabalhadores (51,0%) eram do sexo masculino. A maioria dos indivíduos (n = 36; 59,0%) possuía idade entre 46 e 60 anos e 50 trabalhadores (82%) se consideram negros. Identificou-se que 18 (29,5%) apresentavam primário incompleto e que a renda familiar total foi majoritariamente variável entre 1 e 2 salários-mínimos (n = 50; 82,0%). Além disso, 47 participantes (77,1%) informaram não utilizar qualquer Benefício Assistencial do Governo.
No que se refere ao acesso a serviços odontológicos, verificou-se que 59 participantes (96,8%) foram alguma vez ao consultório odontológico e 32 (52,5%) procuraram atendimento no último ano e foram atendidos. O principal tipo de consultório procurado no último ano foi o plano de saúde ou convênio (n=30; 49,2%). Quando questionados sobre o principal motivo para a última consulta odontológica, 24 participantes (39,3%) referiram realização de serviços de limpeza, prevenção ou revisão e 22 (36,1%) julgaram o atendimento como bom. Para 46 trabalhadores (75,5%) a última consulta odontológica não foi realizada no SUS.
Identificou-se que 6,5% (n=4) informou não possuir plano odontológico particular ou oferecido pela empresa, 46 (75,4%) não sabiam nomeá-lo e 43 (70,5%) não haviam utilizado o plano fornecido pela CLIN. Dentre os indivíduos que utilizaram os serviços do plano, as maiores razões elencadas foram: tratamento dentário – obturação, canal etc. (n = 14; 23,0%) e limpeza, prevenção ou revisão (n = 25; 41,0%). Houve concordâncias entre os motivos mais prevalentes para a busca de consulta odontológica no último ano e para os atendimentos odontológicos via planos de saúde, representados, respectivamente, pela realização de serviços de limpeza, prevenção ou revisão (39,3% e 41,0%). A busca por atendimentos odontológicos no último ano no SUS foi bastante baixa (n=3; 5%).
Considerando que a CLIN oferece plano odontológico a seus empregados, uma questão fundante deste estudo era identificar em que medida os trabalhadores usufruíam do benefício. Os resultados revelaram que parcela considerável dos trabalhadores não sabia nomeá-lo (75,4%) e não tinham o utilizado. Este aspecto é preocupante, na medida em que demonstra desinformação/desinteresse na busca de cuidados de saúde bucal via saúde suplementar.
Para que o acesso aos serviços de saúde aconteça de forma satisfatória é preciso equacionar características sociodemográficas da população atendida, necessidades de saúde, demanda e oferta de serviços, satisfação dos usuários e qualidade da assistência, evitando quaisquer tipos de barreiras aos serviços oferecidos, sejam eles via SUS ou privados. Investir na melhoria do acesso aos serviços de saúde bucal pode contribuir para a obtenção de informações, cuidados preventivos e tratamentos para as condições bucais.
Considerações finais
A pesquisa identificou que a população participante se encontra em situação de vulnerabilidade na medida em que convive com a exposição a riscos ocupacionais, preconceitos sociais e está composta majoritariamente por indivíduos negros, entre 46 e 60 anos e com renda familiar total entre 1 e 2 salários-mínimos.
Boa parte dos participantes havia procurado atendimento no último ano, especialmente em plano de saúde/convênios, tendo limpeza, prevenção ou revisão e tratamento dentário como os principais motivos para a busca. Essas mesmas motivações foram elencadas para a última consulta odontológica recebida. De modo geral, os atendimentos foram avaliados de forma positiva. Embora os trabalhadores sejam beneficiários de plano odontológico oferecido pela CLIN, a maioria ainda não utilizou o plano e parcela menor não soube informar o nome do plano que lhe é oferecido.
Ações educativas e disponibilização de informações são indicadas para auxiliar na melhoria do acesso aos serviços odontológicos dos trabalhadores da limpeza urbana.
