Introdução: A relação e vivência com a natureza é inerente à existência humana. Ao longo da história e do desenvolvimento da humanidade, o uso e relação com a flora e fauna estruturou culturas, sociedades, territórios, processos de cuidados e sistemas de saúde. Esses processos e vivências sedimentaram e sistematizaram práticas tradicionais e populares de cuidados em saúde que em grande parte envolvem a biodiversidade de um determinado território. Desde 2002, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconhece que as plantas usadas em Medicinas Tradicionais seculares são importantes recursos terapêuticos e práticas de cuidado, recomendando que essas devem ser incorporadas nos sistemas de saúde. No Brasil, principalmente a partir da Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (2006), intensificaram-se as ações e as estratégias para o fortalecimento da cadeia produtiva nacional de fitoterápicos e subsídio de um uso racional das plantas medicinais. Com esta política, formulou-se uma estrutura com a descrição das formas de usos e de produção de conhecimento sobre a fitoterapia. Nesse documento foram incorporadas diferenças e categorias de fitoterapia, que são diferenciadas pelo grau de confiança, segurança e validação sobre a informação e prática que é advinda do tipo dessa terapêutica (popular, tradicional e ocidental científica). Dentro desta estratificação, as formas e os conhecimentos advindos da fitoterapia ocidental científica é a mais aplicada e recomendada.
Uma das ferramentas e tipo de estudo muito presente no campo da fitoterapia, é a etnofarmacologia. Uma das definições mais aplicadas a esse tipo de estudo, de acordo com Elaine Elisabetsky (2003): “refere-se como a exploração científica interdisciplinar dos agentes biologicamente ativos, tradicionalmente empregados ou observados pelo homem”. Um dos objetivos e contribuição dos estudos etnofarmacológicos são para descoberta e desenvolvimento de novos fármacos.
Em relação aos conhecimentos e às práticas de cuidado que envolvem a natureza, desde relatos dos primeiros naturalistas no Brasil colonial até a atualidade, há uma estrutura comum sobre a forma de pesquisa em relação à biodiversidade brasileira e o contexto do uso das plantas medicinais. Dentro desta perspectiva sobre formas hegemônicas de produção científica, observa-se uma lógica de bioprospecção, não somente das espécies, mas dos saberes e conhecimentos produzidos a partir desta tal planta. Um dos objetivos contemporâneos dessa coleta de dados e forma de pesquisa, reforçado e discutido em muitos dos estudos, é para a produção de novos medicamentos, assim como para identificação de novos recursos terapêuticos, sobre a justificativa de inovação nessa modernidade. Grande parte dos atuais estudos no campo da fitoterapia se concentram em apenas compreender quais espécies são utilizadas, quais são indicações e formas desse uso. Existem poucas pesquisas que se debruçam, de fato, a compreender e subsidiar as medicinas tradicionais brasileiras, assim como a estruturar a fitoterapia tradicional brasileira. Portanto, tem-se como objetivo analisar e problematizar a estrutura de produção acadêmica e políticas no âmbito da fitoterapia.
Desenvolvimento do trabalho: Este trabalho é resultante de uma dissertação e pesquisa autoetnográfica que empregou o aporte teórico para escrita de si, o conceito de escrevivência de Conceição Evaristo, para resgate e elaboração das vivências da pesquisadora, com o intuito de compreender com o subsídio da teoria decolonial, sobre o processo de invisibilização, apagamento e silenciamentos dos saberes tradicionais e populares envolvendo as plantas medicinais.
Resultados: Pela lente analítica da teoria decolonial e contracolonial, a partir da construção histórica sobre o colonialismo e as formas de colonialidades na modernidade, esse formato hegemônico de produção de conhecimentos, estruturas de pesquisas e estratificação das “fitoterapia” são resultantes, principalmente, da colonialidade do poder, do saber e da natureza.
A colonialidade do saber opera para a dominação e sustentação do eurocentrismo e do Norte Global, e se manifesta no controle da produção de conhecimento, criando a categoria “o outro” e o que é universal. Tais processos e estruturas têm como impacto a modificação e formatação das subjetividades das pessoas neste sistema-mundo moderno. Com a operacionalidade da colonialidade do saber ocorre a anulação e rejeitamento das outras epistemes para que o único saber válido seja o conhecimento produzido pela ciência ocidental europeia e norte americana. Toda essa estruturação e operação do controle do que é conhecimento válido privilegia e é direcionado, principalmente, a duas categorias sociais: pessoas brancas e homens. A ciência ocidental foi e é uma instituição importante para manutenção dos privilégios da branquitude e do patriarcado.
A colonialidade da natureza se relaciona ao contexto de exploração e relação da modernidade com a natureza/biodiversidade, criando a narrativa sociedade versus natureza, para justificar o progresso. Nego Bispo denomina esse processo como cosmofobia, que fundamenta esse sistema colonialista de armazenamento, de expropriação e de extração desnecessária dos cosmos.
Dentro dessa construção, as formas de produção de conhecimento e saberes que não derivam das instituições dessa ciência ocidental são classificadas como selvagens, folclóricas, não elaboradas e que necessitam ser aprimoradas e validadas pelas instituições acadêmicas, como as universidades. Como muito bem dialogado por Nego Bispo, por sua perspectiva e movimento contracolonial, no sistema colonialista há o deslocamento do humano da natureza, surgindo a necessidade de sintetizar aquilo que é orgânico, criando-se a categoria para a biodiversidade de matéria-prima. Matéria-prima que deverá ser aprimorada e sintetizada por esses agentes humanos, instituições e Estado.
No contexto das práticas e saberes envolvendo a biodiversidade brasileira, sobretudo o uso terapêutico e para o cuidado em saúde com as plantas medicinais, observa-se a operacionalização das colonialidades do saber e da natureza, resultando nessa hierarquia sobre as formas de fitoterapia. O extrativismo epistêmico é uma lógica operante e presente na teia de produção de conhecimentos sobre as plantas medicinais. As pesquisas e até mesmo algumas políticas são voltadas e incentivam um modelo de prospecção, em que se valoriza a busca e formulação de espécies vegetais para produção de medicamentos. A partir dessa lógica, chás e outras preparações mais artesanais são formas rudimentares, pouco estudadas, validadas e incluídas nesse aparato da ciência ocidental. Além da compreensão desses fenômenos pela teoria colonial, podemos entender as bases desse processo pelos conceitos de classificação de poder do Estado de Nego Bispo (2022), de capital racial de Jair da Costa Júnior (2021), e de epistemicídio discutido por Abdias Nascimento (2016) e Sueli Carneiro (2005).
Por que ainda no Brasil, país com a biodiversidade mais rica do mundo e que tem marcante presença e cultura de comunidades com práticas de cuidado seculares com as plantas, não conseguimos estruturar e preservar uma fitoterapia tradicional brasileira? Por que as práticas de cuidados tradicionais genuinamente brasileiras ainda não foram incorporadas no Sistema Único de Saúde (SUS)? Quais são os retornos e a devolutiva da sociedade, dos pesquisadores e Estado aos povos e comunidades que produzem e protegem os saberes da flora brasileira? Quem se beneficia, ao final de tudo, com essa divisão hierárquica dos tipos de fitoterapias?
Considerações finais: É urgente a reflexão e o debate sobre os processos colonialistas na forma de produção de conhecimentos e operação das pesquisas, como as etnofarmacológicas, no âmbito das plantas medicinais. Assim como estratégias e ações de reparação histórica às comunidades deste país que sofreram várias formas de opressões, legitimada pelo Estado, no contexto da bioprospecção de suas práticas e saberes envolvendo a biodiversidade brasileira. Decolonizar e contracolonizar os currículos universitários e as políticas públicas na temática das plantas medicinais se faz altamente necessário.