Atualmente, com o avanço acelerado do "saúde móvel" (mSaúde) está na ordem do dia a presença da Inteligência Artificial nas mãos dos cidadãos para prestação de serviços de saúde. O mSaúde é pautado no automonitoramento (selftracking) dos usuárias(o), alguns diriam que para o “autoconhecimento”, outros para o auxilio na tomada de decisão médica. Hoje, por exemplo, cada vez mais a consulta a um ginecologista partilha o encontro com um “intruso” cibernético, um mesntruapp; e o mesmo já pode ser sentido nas interações psiquiatra-paciente, endocrinologista-paciente, cardiologista-paciente, nutricionista-paciente etc.
Nesse contexto, não são apenas os apologetas da IA que defendem que ela “pode conhecê-lo melhor do que você mesmo”. Os serviços especializados em mSaúde também buscam ocupar esse tal lugar simbólico. Para Ross O’Brien, CEO do recém aprovado serviço digital de saúde mental do NHS, por exemplo, o “Wysa?te conhece intimamente.” O Flo, o mais popular menstruapp do mundo ocidental, por sua vez, diz que foi feito para que você “Entenda seu ciclo e seja sua melhor versão”. Discursos como esses são vistos por todos lados da saúde digital.
Com isso em vista, este trabalho busca apresentar os resultados parciais de nossa pesquisa de doutorado em Saúde Coletiva sobre mSaúde. A partir de revisão de literatura e análise de dados primários de usuários e usuárias de mSaúde, defende-se que é possível observar o processo psicanalítico de transferência entre os usuários e as IAs embarcadas nos aplicativos de mSaúde.
A transferência, segundo Jaques Lacan, acontece quando o outro aparece como dotado de um saber sobre a(s) minhas(s) verdades, o que ele chamou de sujeito suposto saber. Suposto, pois – para quem consentiu a existência do inconsciente – trata-se de uma ilusão. De uma abertura para fé no saber que o outro possui sobre mim, quando na verdade o outro não o detém, nem poderia. Mas ainda assim a aparência de detê-lo, a suposição fantasiosa, já consiste na força simbólica exigida, imprescindível para a prática clínica.
Na saúde digital o sujeito suposto saber aparece encarnado nas IAs embarcadas no artefato técnico que a(o) usuária-paciente tem na mão. O antropólogo Bruno Latour consagrou o conceito de actante para ser referir a qualquer coisa que seja concebida para ser a fonte de uma ação, qualquer coisa que modifica outra em um julgamento ou avaliação. Neste contexto, consideramos plausível chamar o mSaúde de actante suposto saber.