A alimentação ocupa vários espaços dentro da sociedade, para além do sentido biológico de saciar a fome a comida está culturalmente ligada a tradições que são passadas de geração a geração, tem significado simbólico de resistência para determinados grupos, está presente em festas típicas de países e suas cidades e por isso marcam o ser humano em nível emocional, seja por fazer lembrar de um tempo mais simples na infância, seja pelos momentos e pessoas que dividiram esse alimento conjuntamente. As marcas sensoriais deixadas no ser humano estão relacionadas com os sentimentos experienciados e as sensações percebidas no momento em que se vive algo. A boca e o paladar são os primeiros meios que uma criança sente prazer durante a infância, o que a psicologia chama de fase oral. Serve como fonte de descoberta das coisas que rodeiam ela, por isso a comida deixa uma marca profunda no ser humano e se conecta com o sentimento de pertencer a um lugar e se sentir próximo das pessoas ao redor. Outros sentidos também compõem esta experiência: cheiro, olhar, tato. Devido a isso as comidas típicas de uma região ou família podem despertar no sujeito sentimentos, a comida de conforto está relacionada com esse comer afetivo servindo como uma forma de se reconectar com seus entes queridos mesmo estando separados.
Esse trabalho é fruto das rodas de conversa do projeto de pesquisa “O Mal Estar no Laço Social e a Busca Pelo Bem Viver”, realizado com estudantes universitários da UFPA. A comida de conforto foi citada por diferentes participantes como uma forma de se sentirem mais próximos de suas famílias, mas também como sinal de pertencimento a um dado lugar, a uma posição social. O objetivo da pesquisa é proporcionar um espaço onde os estudantes universitários possam falar sobre seu sofrimento cotidiano e suas estratégias de enfrentamento, bem como as redes de apoio a qual acessam. Esperamos com esta pesquisa, iniciada em agosto de 2023, auxiliar a Superintendência de Assistência Estudantil da universidade na oferta de políticas de assistência pensadas a partir das demandas das falas dos estudantes.
Elegemos a metodologia da etnografia por entender que a escuta dos informantes, a partir da implementação das rodas de conversa, seria a forma mais coerente de realizar a pesquisa. Uma pesquisa de campo na qual utilizamos a observação, o diário de campo e a escuta dos grupos de discentes, na roda de conversa, para depois analisar as falas produzidas, operando com categorias de análise que nos permitam separar os conteúdos que emergem no discurso dos estudantes observando o que mais se repete, as ambivalências discursivas, mas também aquilo que é singular na experiência relatada de cada estudante escutado. Sendo o método da roda eleito já na perspectiva de analisar os efeitos da grupalidade durante os quatro encontros que realizamos para implementar todas as fases da pesquisa.
Para as rodas de conversa foram criadas perguntas norteadoras e utilizamos diferentes dinâmicas para que o grupo se sentisse confortável em falar e expor seus pensamentos e sentimentos. Neste início do trabalho os discentes escutados são na sua maioria vindos de cidades no interior do Pará. Uma vez na capital para estudar, a saudade de casa foi algo constante em suas vivências, por nem sempre poderem viajar de volta aos seus municípios procuravam outros meios de se conectar com seus entes queridos, e é nesse cenário que o comer afetivos aparece na discussão. O simples ato de ingerir um alimento que estava sempre presente durante as comemorações ou até mesmo no dia a dia no território de origem já ajudava a melhorar os sofrimentos vivenciados.
Apesar do grupo estar super aberto a participar das rodas de conversa, a identificação e grupalidade entre eles foi se desenvolvendo durante os encontros e melhorando a cada vez que alguém falava algo que a maioria do grupo se identificava. O tópico comer afetivo não ficou restrito apenas a alimentos que causavam uma conexão com a família e momentos específicos da infância, mas também as comidas típicas do estado em que residem, como por exemplo o tacacá, a maniçoba, o açaí, o arroz com galinha. Os alimentos conectam povos e territórios e fazem parte das características culturais do lugar, despertam memórias relacionais e afetos vivenciados em distintos momentos da vida. Os alimentos atestam a identidade de um povo ou de uma dada população, pois remetem aos seus costumes, servindo assim como elemento de reconexão, como produtor de pertencimento.
Ao proporcionar essas rodas de conversa inicialmente era esperado que questões mais relacionadas a faculdade surgissem, sendo assim o comer afetivo como estratégia para lidar com o sofrimento mostrou que nem sempre os alunos estão em busca de coisas complexas ou concretas para suas questões e em muitos casos podem ser coisas simples que remetem a sua origem, as lembranças de seus territórios, as memórias da infância na casa da família que podem comparecer como estratégias de lidar com o sofrimento.
Muitas das vivências no espaço universitário estão relacionadas com coisas que fogem do controle do discente, como por exemplo ter que morar longe de suas famílias para estudar, ou a sensação de não pertencer ao lugar. Também compareceu nos discursos o medo de se decepcionar ou mesmo decepcionar a família, pois entrar para a universidade é um sonho de muitas famílias para almejar uma vida mais tranquila. O alimento de conforto, algo relativamente simples e que fazemos cotidianamente apareceu como algo que produz certo alívio e força para enfrentar as pequenas coisas do dia-a-dia que faz com que os discentes se recordem que fazem parte de um território e de uma família.
Desse modo, é incontestável que o comer afetivo está totalmente ligado à soberania alimentar de um povo e de um território, mesmo que as pessoas estejam longe de seus familiares e do lugar onde cresceram e viveram a maior parte de sua vida. O simples gesto de se alimentar com algo típico já traz um conforto enorme, como relataram a maioria dos informantes.
Frente a esta constatação é imprescindível que dentro da universidade esse tópico seja compartilhado entre todos, pois a diversidade de discentes dentro da comunidade acadêmica é enorme, desde indígenas, quilombolas e discentes de outras regiões do estado que apresentam sua própria cultura alimentar e que por meio do contato com a comida se sentem mais pertencentes ao local. Alimentar-se é um ato corriqueiro para aqueles que têm acesso ao alimento, mas também é um ato político revestido de muita simbologia e cultura que pode servir de estratégia protetiva ao sofrimento gerado pelas incertezas, expectativas e afastamentos vividos pela chegada no meio acadêmico.