O trabalho a ser apresentado figura como um dos pontos de discussão fomentados a partir de uma exploração cartográfica dos registros realizados durante um ano de trabalho como Redutora de Danos em uma Equipe de Consultório na Rua numa capital do Nordeste brasileiro. No percurso do mestrado no Programa de Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (EICOS) do Instituto de Psicologia da UFRJ, desde março de 2023, inicia-se a construção das cenas extraídas do vivido, que permitem cartografar as tensões que atravessam os encontros no trabalho e interferem na produção do cuidado em Saúde Mental, com um investimento em interrogar as próprias práticas em relação com o contexto e com as trocas possibilitadas pelos encontros.
Esta é uma pesquisa que tem como ponto de partida os incômodos com o modo como temos nos relacionado com o campo da Saúde Mental a partir das relações de trabalho. Ao adotar o método cartográfico como direção, assumo a posição de investigação (em primeira pessoa) em múltiplos planos de composição para o trabalho. No plano da intervenção/interferência clínico-política, admitindo a conjuntura e a materialidade histórica que se apresentam, bem como, a inevitável interferência que o ato de pesquisar impõe a tal campo de forças. No plano das relações que, inevitavelmente, atravessam e atravessarão o meu corpo em trânsito. Estando neste trânsito, considero também importante abrir o corpo para os territórios. Os que já existem e os que se inventarão à medida em que a eles me incluo ou me retiro. Tendo como prática a produção do Diários Cartográfico, desde os primeiros estágios na rua, ainda na graduação, este torna-se instrumento de trabalho e ponto de partida para os registros que produzem e produzirão as “cenas” desta pesquisa.
Desse modo, tal percurso que parte dos afetos gestados pelo campo do trabalho, é composto por etapas, não cronologicamente estabelecidas, compostas pela revisão das produções acerca do campo do trabalho em saúde mental com populações vulneráveis, por um levantamento documental que inclui leis, portarias, notas técnicas e outros documentos relacionados às diretrizes que situam e orientam o trabalho do Consultório na Rua como parte da Rede de Atenção Psicossocial, e o campo da Saúde Mental e das Políticas de Álcool e outras Drogas a partir da perspectiva da Reforma Psiquiátrica. Em composição com o retorno aos registros dos diários, a partir da trilha de afetos que orientam certa “decupagem” e “processamento” das cenas que anunciam o entrelaçamento entre os planos de composição para o trabalho. Este percurso é traçado como uma elaboração do vivido, na busca de identificar campos de força, linhas, aberturas, potências e possíveis capturas que tais atravessamentos podem agenciar.
Registros de um trabalho atravessado pela centralidade do modelo biomédico, pela escuta fragmentada e posição prescritiva e manicomial, conduzem a investigação a respeito do que tem agenciado a construção das práticas na relação entre trabalhadores e usuários com as tecnologias disponíveis nos territórios, quando as questões relacionadas à saúde mental se tornam catalisadores para a criação de barreiras de acesso. Pensar a loucura como produção de modos de existir que dão conta de suportar a vida convoca a questionar, já de partida, a lógica de produção com a qual nos relacionamos. Ao buscar os recursos disponíveis para dar suporte a possíveis enfrentamentos a uma lógica normativa, que pune e classifica quem dela desvia, uma crise que se instala é a percepção de que dela também participo, enquanto lido com a angústia daquilo que produz.
Trata-se do processamento de cenas onde o sofrimento relacionado à saúde mental aparece como entrave para o estabelecimento de uma proposição vincular e passa a interferir na oferta de cuidados àqueles agravos que podem ser, inclusive, agudizados pela demora em conseguir transpor as barreiras de acesso que são impostas a pessoas social e politicamente vulnerabilizadas. Barreiras que, nestes casos, anunciam dificuldades das equipes com o manejo a um discurso que não está submetido aos modos de produção e ordenamento de linguagem esperados, e que respondem à hierarquia e à categorização às quais são expostos de maneira a desorganizá-las. As políticas públicas que estabelecem as diretrizes para o trabalho do Consultório na Rua, preconizam o modelo territorial e comunitário, o cuidado integral, longitudinal, pautado na Redução de Riscos e Danos, na prevenção e promoção da saúde, a ser investido na articulação em redes setoriais e intersetoriais, por equipes multiprofissionais. No entanto, se faz necessário interrogarmo-nos sobre como refletir e incorporar essas diretrizes no trabalho cotidiano, atravessado por contradições e complexidades de várias ordens.
Um dos fatores analisadores que emergem a partir da observação desse contexto é o modo como se configura a implementação e expansão da equipe a partir de um cenário de terceirização e precarização do trabalho no SUS e o impacto na produção do cuidado junto a pessoas em situação de vulnerabilidade. Após o agravamento da Pandemia de COVID-19, o município iniciou um Projeto de caráter emergencial para a criação e fortalecimento das equipes de Consultório na Rua. As contratações foram realizadas no ano de 2020 através de uma Organização Social (OS), por via de terceirização. Nesta ocasião a equipe do território, onde venho a trabalhar posteriormente, já contava com médica e psicólogo, vinculados à Prefeitura Municipal por concurso público, de modo que trabalhadores das demais categorias profissionais e a coordenação da equipe chegam para um campo de trabalho já em andamento, com um vínculo de contratação diferente, considerado fragilizado, configurando uma espécie de “equipe mista”. A heterogeneidade do grupo, no entanto, chama a atenção para além da multiprofissionalidade e da diferença na modalidade de contratação, duas dimensões que já proporcionam repercussões importantes para as relações de trabalho. Relações raciais, questões de classe, de formação acadêmica e trajetória profissional são marcadores que informam histórias de vida com diferentes lugares sociais, modos de ver e ser visto, e de se relacionar com o trabalho. São marcadores que conferem lugares distintos de poder-saber ao aparecer nas cenas do cotidiano da equipe.
A exploração destas dimensões favorece tensionamentos na discussão das Políticas que amparam a produção do cuidado, ao desviar do antagonismo e culpabilização a trabalhadores enquanto não nos desresponsabiliza, já que a implicação individual, bem como a construção coletiva, são vias à manufatura de práticas que desafiam os modelos instituídos como fruto de um processo "civilizatório" colonial que se atualiza como projeto de poder, produzindo violência e subjugamento das singularidades divergentes de um suposto "universal" nas práticas em saúde.