Este trabalho discute sobre a implementação e o desenvolvimento de uma ação comunicacional como experiência de apoio à proteção e promoção da saúde mental e do bem-viver amazônidas na Universidade Federal do Pará. Em consonância com a Organização Mundial da Saúde (2022), partindo de uma noção de saúde mental mais além da ausência de sintomas, enfermidades ou transtornos, ou seja, um estado de bem-estar no qual o sujeito possa desenvolver suas atividades diárias, possa também se recuperar dos tensionamentos cotidianos e contribuir de forma produtiva em sua comunidade, propomos pensar que saúde mental é cidadania. Sendo assim, é preciso desenvolver estratégias grupais para promover e proteger a saúde mental não somente nos serviços de saúde. Nesse sentido, e atentos à diversidade e às especificidades dos territórios de origem de nossos discentes, é preciso agregar à noção de saúde mental o conceito de bem-viver, tal como nos ensina Alberto Acosta (2016), que parte de um mundo pensado e organizado comunitariamente, articulando direitos humanos e direitos à e da natureza, na construção de relações de produção, de intercâmbio e cooperação, na direção da autossuficiência e autossustentabilidade, com a presença estrutural da ancestralidade.
Utilizar um dispositivo comunicacional como promoção e proteção da saúde mental, não é novidade, são utilizados desde as primeiras experiências de desinstitucionalização nacionais e internacionais. Como exemplos: Rádio Tam-Tam de Santos, que teve importante papel na reforma psiquiátrica e que já encerrou seus trabalhos; Radio Fragola de Trieste (Itália), que iniciou há época de Franco Basaglia e que até hoje segue em funcionamento; bem como Radio Nikosia de Barcelona (Espanha), que iniciou em 2003 como um programa da rádio livre Contrabanda FM, em 2008 transformou-se em Asociación Socio Cultural Radio Nikosia e desde o início atuou fora do sistema e das redes de saúde como um movimento de criação de cidadania. Cada experiência de rádio e saúde mental pelo mundo tem suas singularidades, pois responde aos distintos contextos sociais. Nossa experiência na universidade, em território amazônico, não poderia deixar de ter suas marcas singulares.
Ao fundo, sons da mata, logo a voz de um integrante do projeto anuncia “Rádio Curupira, um grito de vida da floresta”, seguida diretamente do som de fortes golpes em um tronco de árvore, um grito ancestral e um tremulante maracá que vai se misturando aos ruídos da mata e suave desaparição. Com essa vinheta iniciamos cada episódio de nosso projeto de rádio/podcast feito por e para alunos, alunas, alunes da UFPA. Trata-se de um projeto vinculado à Superintendência de Assistência Estudantil da universidade e que objetiva promover e proteger a saúde mental e o bem-viver de discentes por meio da criação, planejamento, desenvolvimento, gravação e veiculação de uma ação comunicacional. A organização das ações se dá a partir da assembleia, na qual são tomadas todas as decisões referentes ao projeto. Desde o tema e o conteúdo de cada episódio, a criação de vinhetas, as entrevistas programadas, a produção dos programas, as estratégias de divulgação por ações presenciais ou pelas redes sociais, tudo é decidido, construído e planejado coletivamente. Até mesmo a decisão sobre o nome do projeto foi tomada em assembleia.
Nesse sentido, parte-se do princípio antimanicomial de que a liberdade é terapêutica. Liberdade entendida, tal como nos ensina Hannah Arendt, como condição à cidadania. Estar em iguais condições de contribuir singularmente pelo discurso e pelas ações em uma construção plural. E no nosso caso, como seres amazônidas, liberdade como condição à florestania. Compor também o espaço no qual a floresta nos habita, faz parte da promoção e proteção do bem-viver como uma forma de descolonizar nossas práticas e nos deixarmos atravessar também pelos saberes da ancestralidade. Trata-se, assim, de um trabalho constituído por tecnologias leves, que Emerson Merhy, em sua Cartografia do Trabalho Vivo em Ato, define como sustentadas no encontro, na produção viva de cuidado, que se abre em potencialidade, pela dialética inerente à condição da pluralidade, a caminhos novos e ainda não trilhados. Rádio Curupira se forma do trabalho vivo em ato, como uma máquina de guerra política, pois circunscreve e defende territórios de criação e compartilhamento de saberes de forma implicada. Ao mesmo tempo, seguindo o mesmo Merhy, nosso projeto também se propõe como máquina desejante, criando uma experiência coletivizadora, uma forma de deixar singulares pegadas no mundo, produzindo encruzilhadas para o encontro entre saberes científicos e saberes profanos marcados por um devir ancestral.
Curupira, de cabelos de fogo e pés ao contrário para despistar quem ousar lhe perseguir, é protetor das plantas e animais e povos das florestas. Segundo João Barbosa Rodrigues em sua Piranduba Amazonense de 1890, os domínios do Curupira se estendiam por um vasto território sul-americano: era falado naqueles Brasis de sua época, mas também nos territórios demarcados pela colonização europeia como Venezuela, Peru, Paraguai e Guianas. De origens imemoriais, dos Nahuas chegou aos Caraíbas, destes aos Tupis e Guaranis. O mesmo João Barbosa Rodrigues conta que autores do início da invasão europeia como Anchieta em 1580, Fernão Cardin em 1584, Laet em 1640 e Acuña em 1641 deixaram registros circunscrevendo a sua real existência. Aparece como o Curupira, como a Curupira, talvez desde aquele tempo já era e curupira. Provavelmente já andava pelas matas da Pindorama e arredores antes mesmos destes povos indígenas que primeiro entraram em contato com o branco europeu. Deixava suas pegadas ao contrário, que fingem que vem quando estão indo, na produção de um equilíbrio tênue. Um equilíbrio que sempre lutou para proteger e que tem sido a principal presa de todas as manifestações do brutal colonialismo que assola estas terras desde a chegada do primeiro europeu. Curupira, assim, é força decolonial.
Colocar em ação esse devir ancestral e essa força decolonial o fazemos de forma cotidiana, usando o coletivo como dispositivo. A cada segunda-feira nos encontramos, para a assembleia na sala da Coletiva Banzeiro – Laboratório de Estudos e Intervenções em Psicologia Social e Saúde Coletiva – e nos estúdios da Rádio Web da UFPA para a gravação de cada episódio. Nossos episódios são temáticos. A escolha dos temas se dá na assembleia, no coletivo. Para cada tema, assim, há uma rodada de conversa, na qual cada integrante tem seu espaço e tempo de fala garantido para trazer sua contribuição singular: como o tema atravessa sua experiência, sua vida, sua história pessoal e a de quem lhe é próximo, bem como as diversas dimensões desse tema escolhido nos territórios da universidade, da cidade de Belém, da sua cidade natal (parte importante dos integrantes do projeto são originariamente de regiões do interior do estado do Pará), ou seja, das diversidades que nos atravessam como amazônidas. A assembleia é um momento de trocas, de produção de reflexões individuais e coletivas, de colocar-se singularmente em um espaço comum. Um espaço do exercício da leveza, da conversa solta e descontraída, mas também de colocar na mesa os conflitos, as violências cotidianas, os desafios e as potencialidades dos nossos territórios amazônicos. É sobretudo um espaço de apoio e suporte mútuos, engendrado na criação coletiva de cada episódio e cada ação rádio-curupíricos, e se desdobra em cada programa gravado e postado como podcast no Spotify (Radio Curupira) e no Instagram (@radiocurupiraufpa).