Apresentação
O estudo trata-se de um relato de experiência implicado nas práticas de acolhimento realizadas pelo estágio e extensão do projeto “Devires da Clínica: transversalidade, clínica ampliada e o apoio às práticas de cuidado nas Redes de Atenção à Saúde”, vinculado ao departamento de Psicologia da Universidade Federal da Paraíba (PROBEX/UFPB). Nesta ação, apostamos na construção do ato clínico da recepção em uma Unidade de Saúde da Família (USF), de um bairro periférico da cidade de João Pessoa - PB.
Na Atenção Básica (AB), o acolhimento assume um ponto estratégico na relação usuário-equipe-serviço, uma vez que se propõe como tecnologia leve de cuidado, mediada pela escuta qualificada e pela formação de vínculos, para facilitar o acesso e a construção de respostas possíveis às necessidades de saúde da população. Acolher, portanto, permeia o campo das relações, compondo-se como parte de um atendimento humanizado.
Dessa forma, diz respeito não somente ao ato de receber o que o outro demanda, mas oferecer um olhar atento à sua singularidade e aos seus atravessamentos, possibilitando estratégias adequadas de atendimento conforme sua realidade. Assim, sustentamos a composição de uma “Clínica da Recepção”, na perspectiva de fazer do acolhimento um dispositivo também produtor de saúde. Historicamente, a “Clínica da Recepção” foi um dispositivo muito utilizado para viabilizar a passagem do modo asilar para o modelo de atenção psicossocial no contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira.
Aqui, no cenário da AB, assumimos que há no acolhimento uma clínica que se movimenta, acompanhando processos em constante devir, logo, apostamos na implicação desse dispositivo. Sob esse fito, este relato tem como objetivo compartilhar aquilo que nos foi revelado e sentido a partir do que construímos como “Clínica da Recepção”, implicado no que emergia no encontro com os/as usuários/as em chegada à USF.
Desenvolvimento
A “Clínica da Recepção” foi organizada como proposta de acolhimento aos usuários/as da USF, tanto para os que buscavam a escuta individual da Psicologia, como outros serviços da unidade. A ação surgiu através de um convite que nos foi gerado a partir daquilo que emergia pelos corredores da USF. Atravessados/as por aqueles corpos que aguardavam seus atendimentos, nos implicamos em oferecer a escuta atenta, sem perspectivas prévias ou horários estipulados. Tais vivências foram registradas em Diários Cartográficos, os quais permitiram colocar nossas afecções em narrativa, servindo de produção de dados para esse estudo.
Resultados
Nossa inserção na recepção da USF, inicialmente, foi experimentada com certo desconforto e estranheza, aparentemente também sentidos pelos/as usuários/as, por estarmos circulando naquele local. Estar na recepção é estar à deriva para o que aparece e acontece, é habitar um lugar nebuloso que, por sua indefinição, acabava permitindo movimentos e encontros diversos.
Enquanto alguns/mas estagiários/as de Psicologia realizavam escutas nas salas da unidade, outros/as de nós costumávamos ficar encarregados em realizar a “Clínica da Recepção”, acolhendo demandas espontâneas, tirando dúvidas básicas ou conversando informalmente com os/as usuários/as que ali estavam, procurando saber o que aguardavam naquele corredor.
Assim como nós, alguns/mas usuários/as estranhavam nossa presença ali, quase como se não fosse nosso lugar original ou natural. Os/as profissionais da unidade também nos indagavam porque alguns/mas de nós não estavam atendendo nas salas. Esses acontecimentos, sob a ótica da Análise Institucional, podem ser lidos como analisadores, fenômenos que carregam em si os elementos que revelam as problemáticas das relações institucionais. Se causa espanto e estranhamento um/a profissional ou estagiário/a de saúde estar ao lado dos/as usuários/as na recepção, é porque essas figuras não costumam se fazer presentes nesse local.
Descer do “pedestal” do atendimento nas salas, como uma psicologia tradicional defende, e ir habitar os corredores e a recepção é também descer das hierarquias enrijecidas que são instituídas em muitos serviços de saúde. Ao circular por esse lugar, nos aproximamos mais dos/as usuários/as e de sua experiência nesse serviço, passamos a observar como se dá sua dinâmica, quais as reclamações que surgem, qual o direcionamento dado aos diálogos, enfim, como é estar do lado ocupado por eles/as.
Para além disso, estar à deriva nos corredores e na recepção abria um leque de possibilidades de ação. Estando em nossas salas de atendimento, pouco víamos a movimentação do serviço e os fluxos que ocorrem nesse ambiente. Na recepção, começamos a ver, inclusive, os/as demais profissionais da unidade. Desses encontros, começamos a investir em conversas com esses/as profissionais, seja para informar de casos encaminhados e que estávamos atendendo, seja para tirar dúvidas e propor ações em conjunto, a exemplo de interconsultas ou visitas domiciliares, fortalecendo o contato interprofissional e potencializando uma abertura comunicacional.
Assim, a partir dos nossos encontros com os/as usuários/as, tivemos maior noção sobre o fluxo de pessoas que vinham procurar a unidade e por quais motivos. Às vezes, chegávamos a realizar alguns atendimentos de demandas espontâneas, usuários/as que já haviam passado pelas escutas e ao nos ver ali, aproveitavam para solicitar um atendimento.
Ao sentarmos ao lado desses sujeitos, e permitindo o fluxo de diálogos , entendíamos todo um contexto de idas e vindas e de territórios existenciais que constituiam a vida desses/as usuários/as. De certa maneira, a “Clínica da Recepção” nos aproximava da vivência comunitária que acontecia na unidade de saúde, tornando-se um dispositivo poroso a essa potência de vida circulante, como também uma ação modulável ao devir das escutas. Alguns/mas usuários/as nos relatavam o cotidiano de vida em território, seus processos de sofrimento e saúde, suas expectativas de atendimento e cuidado no serviço, enfim, modulando todo um espaço para que os sujeitos possam trazer suas perspectivas e construir movimentos de cuidado.
Por outro lado, usuários/as que ficavam sabendo dos serviços de Psicologia por meio dessa “Clínica da Recepção” e agendavam um atendimento conosco. Passamos a refletir que o dispositivo “Clínica da Recepção” possui bases na ética da atenção cartográfica, ou seja, um tipo de atenção aberta e flutuante, uma concentração sem focalização. A partir desse tipo de atenção, nos abríamos para os mais diversos estímulos presentes no ambiente, sem privilegiar, de início, nenhum deles. Acolhemos todos estímulos, até que algo em específico agencia-se nossos sentidos e provocasse um olhar mais detalhado para esse algo que nos convocava. Isso significava circular entre a recepção e os corredores, e, a partir desse movimento de rastreio, éramos convidados a acompanhar territórios diversos.
Considerações finais
A partir do vivido, conseguimos cartografar movimentos instituídos no serviço, como o fluxo da recepção e dos atendimentos dos/as profissionais, que nos dizem sobre um determinado modo de funcionar naquela realidade. Ao mesmo tempo, percebemos linhas mais moleculares e movimentos instituintes no modo de percorrer a unidade de cada usuário/a, além de conhecer mais intimamente suas necessidades e demandas, que muitas vezes não adentravam as paredes do consultório.
Através desse processo, foi possível conhecer e acolher territórios existenciais construídos na relação com o outro e com o coletivo desse cenário, experienciando os afetos estabelecidos nesta interação e discutindo alternativas para oferecer uma atenção integral e central às necessidades dos/as usuários/as. Para além da clínica clássica, construímos um espaço de experimentações, em uma nova forma de cuidado que caminha junto ao usuário/a na própria construção de saúde.