Apresentação
O presente estudo trata-se de um relato de experiência, implicado nas vivências de estágio supervisionado do curso de Psicologia, vinculado ao projeto de extensão “Devires da Clínica: transversalidade, clínica ampliada e o apoio às práticas de cuidado nas Redes de Atenção à Saúde”, da Universidade Federal da Paraíba (PROBEX/UFPB). O estágio foi realizado na Atenção Básica (AB), em uma Unidade de Saúde da Família (USF), localizada em um bairro periférico da cidade de João Pessoa - PB. Neste relato, nos detivemos em específico ao que produzimos em relação ao decorrer do dispositivo da escuta individual.
Tais vivências foram delimitadas a partir das mudanças que buscamos gerar no sistema ainda muito instituído da Psicologia. Na AB, essas são posições que transbordam, uma vez que o cenário é acessado por grupos que, na maioria das vezes, enfrentam diversas barreiras sociais. Isso exige da clínica um olhar por novos ângulos, mais próximo de um sujeito que, para além do corpo biológico, produz saúde a partir do seu território existencial. Partimos, portanto, de um cuidado atento às diversas formas de sofrimentos que podem atravessar um corpo, podendo surgir, principalmente, de um lugar relacionado às diferenças sociais no país.
Para isso, utilizamos na nossa ótica de cuidado, a leitura que a interseccionalidade oferece sobre as relações de poder e desigualdade. O conceito trata-se de uma ferramenta analítica que considera as categorias de gênero, raça, classe, sexualidade (e outras mais) sobrepostas, existindo e moldando-se mutuamente, e se propõe a investigar como essas intersecções afetam a experiência da vida. Isso diz respeito a pensar como as posições de poder incidem sobre o corpo da mulher-negra-lébisca ou da mulher trans-negra-periférica, por exemplo. Não há como dividir tais marcadores, tampouco estabelecer qual deles tem “potencial” opressor maior que outro.
No campo da saúde pública, consideramos que a interseccionalidade se apresenta como prática (política-crítica) importante na compreensão e transformação dos modos de produção de saúde, uma vez que nos amplia a visão tanto sobre as formas instituídas sobre o corpo, que podem gerar sofrimento, como os modos de vida que são conduzidos frente a essas estruturas. Sob essas linhas de cuidado e considerando que a graduação ainda pouco se utiliza de referências que tratam da composição desses cenários, o presente estudo tem como objetivo relatar e refletir sobre como a Psicologia, compondo-se junto a interseccionalidade, pode contribuir com a visibilidade e produção de saúde de grupos minoritários, através da sua atuação na Atenção Básica.
Desenvolvimento
As escutas realizadas na USF ocorreram semanalmente, em um período de quatro meses. Recebemos, por demanda espontânea ou encaminhamento, cinco usuárias do território adscrito da unidade, com idade média entre 45 e 52 anos, sendo todas cisgêneros, das quais três eram brancas e duas negras. Antes de iniciarmos as escutas, tomamos como ponto de partida um certo mergulho na realidade do território, a partir do processo de territorialização. Tais vivências foram registradas em Diários Cartográficos (DC). Diferente de um diário de campo convencional, o DC nos permite o registro do que se produz no encontro. Assim, pudemos relatar aquilo que emergia na relação estagiários/as-território-usuárias, operando na dimensão dos nossos afetos e afecções.
Resultados
Na territorialização, guiada por um Agente Comunitário de Saúde (ACS), fomos envolvidos por algumas conexões heterogêneas do território, o qual é dividido em três etapas. Por um lado, acompanhamos as conexões relacionais, como a feira central, o campinho de areia e a praça que reunia crianças e idosos. Por outro, percebemos as carências que desvelavam a vulnerabilidade social do bairro, como a precariedade de transporte público, esgotos a céu aberto, a incidência de criminalidade e a falta de acessibilidade entre alguns locais, principalmente na terceira etapa, a qual observamos como área mais vulnerável em relação às outras.
Acompanhado esses percursos, a heterogeneidade do local nos permitiu nutrir dos espaços o que poderia se conectar às vidas das usuárias, tanto como linhas duras, como linhas de fuga. Já nas escutas, à medida que as usuárias traziam suas narrativas, percebemos certas semelhanças, entre uma usuária e outra, depois entre todas elas, relacionadas a formas diversas de sexismo e desigualdade social. Em primeiro momento, nos chegaram relatando algumas somatizações, como taquicardias, sudorese e dores de cabeça. Mas, conforme sentiam segurança naquele espaço, suas narrativas externalizavam, em verbo e não verbalizado, cenários com poucas ou quase nulas linhas de fuga, engessadas por um percurso de esgotamento físico e mental.
Chegaram até nós, mães, avós, esposas e filhas que trabalhavam formalmente, informalmente e no lar, cuidavam dos pais, filhos, netos e maridos, mas pouco ou nada falavam sobre cuidar de si. Havia, por assim dizer, uma certa anulação delas mesmas em detrimento da existência de outros (em sua maioria, associados à figura do marido). Diante desses arranjos territorializados, elas nos falavam de sentimentos de insignificância, de falta de reconhecimento, de desgosto e de angústia.
Também relataram sensações de culpa e medo, diante do desejo de romperem com seus vínculos conjugais, uma vez que não conseguiam visualizar saídas possíveis, considerando a realidade econômica e o julgamento de terceiros. “Estou vivendo em uma prisão sem muros”, disse uma delas sobre essa sensação. Outra relatara seu esgotamento por fazer e oferecer tudo, mas nunca ser reconhecida ou ter alguma ação recíproca pelo seu marido e seu pai. Com efeito, observávamos que essas mulheres perdiam a vontade de vivenciar o mundo, sem desejos por qualquer coisa próxima que pudessem lhe esgueirar dos vetores que lhe adoeciam.
Diante desses relatos, percebemos que a intersecção gênero-classe atravessava fortemente o modo de vida das usuárias. Isso nos permitiu refletir junto a elas como essas relações se tornaram geradoras de sofrimento. Entre uma narrativa e outra, buscamos compor conexões relacionais, dentro e fora da unidade. Integralizamos o cuidado com outros profissionais de referência, em especial com os médicos que acompanhavam as usuárias e a farmacêutica da unidade. Buscamos investigar aquilo que também falava do orgânico para, junto com as usuárias, compreendermos o que estava para além dessa ordem.
Assim, construímos caminhos possíveis que lhe permitissem retomar a si mesmas, a partir do autocuidado e da construção de redes vivas no seu território. Ao decorrer das escutas, encontramos novas redes de apoio e espaços relacionais que as usuárias conseguiam se conectar, como o grupo de exercícios funcionais promovidos na praça central e a caminhada pelo território. Além disso, foi possível compor rotas para a concretização de sonhos, antes deixados à margem devido às barreiras conjugais e sociais que enfrentavam. A partir da construção dessas redes de cuidado, as usuárias conseguiram promover mecanismos potencializadores de segurança, autoestima e autonomia.
Conclusão
Diante da realidade social do país, as formas de opressão que podem gerar sofrimento sobre um corpo são diversas. Nessa via, utilizar da leitura da interseccionalidade permite compreender como essas diferenças atuam e posicionam cada sujeito de forma distinta no mundo. No cenário da saúde pública, construímos encontros com mulheres que sofriam múltiplas formas de subordinação pela via do patriarcado e da vulnerabilidade social. Há de se considerar que usuários/as atravessados por outros marcadores também poderiam ter buscado tal território de cuidado. Acolher esses atravessamentos, portanto, pode gerar caminhos possíveis para construção de linhas de vida frente às barreiras instituídas por essas estruturas.