Os períodos chuvosos que compõem o cotidiano dos belenenses nos meses iniciais do ano – conhecidos como águas de março – tornou-se parte naturalizada da cultura dessa população, seja pelas piadas acerca da imprevisibilidade do clima nesse período ou mesmo pelo conhecimento comum de quais ruas ficam alagadas. Ainda assim, percebe-se a falta de uma estruturação que acompanha os próprios fenômenos naturais e dinâmicas socioespaciais característicos da região, a qual facilita a formação de alagamentos e inundações.
Desse modo, o presente estudo se trata de um relato de experiência desenvolvido por discentes do 9° semestre de psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA), a partir da disciplina de Psicologia das Emergências e Desastres. A experiência aborda as inundações nos bairros Umarizal e Guamá de Belém (PA), município situado na região norte do Brasil cujo clima amazônico relaciona-se a altos índices de precipitação entre os meses de dezembro a maio que, por sua vez, propicia a ocorrência de inundações no território em períodos chuvosos. Diante desse contexto, o estudo objetiva tecer uma análise crítica dos aspectos socioeconômicos e étnico-raciais que perpassam tais inundações, tendo em vista os espaços e as populações mais afetadas, assim como avaliar os possíveis impactos no bem-estar desses residentes, destacando as discrepâncias a depender do bairro posto em análise.
Para retratar esse cenário, realizou-se uma pesquisa acerca dos artigos e matérias jornalísticas que discutem sobre a temática, de forma que estes foram selecionados sem recortes de temporais, apenas de acordo com o local afetado pela inundação e a credibilidade da plataforma midiática. Esses dados foram reunidos e articulados ao relato da experiência dos discentes enquanto residentes dos respectivos bairros, comparando-os em suas disparidades e os significados sociopolíticos que constroem essa realidade.
A Umarizal era, a princípio, um bairro destinado para a moradia da camada pobre da população belenense, habitado majoritariamente por negros trabalhadores. Os terrenos na região eram majoritariamente alagados, com estradas de terra cercadas de capim, que servia de alimento para as criações de gado da região, além da presença marcante da fruta umari, que originou o nome do bairro. Contudo, durante a Belle Époque, com o projeto de transformação da cidade de Belém em uma “Paris na Amazônia”, houve uma mudança drástica na realidade da Umarizal, passando por um rápido processo de urbanização. Por volta dos anos 80, ocorreu uma verticalização das moradias no bairro, além de um aumento considerável da quantidade de locais de comércio. Essa transformação levou a uma alteração do perfil dos moradores do bairro num processo de elitização do bairro. O local que antes servia de residência para a população negra e pobre de Belém, começou a atrair a classe média alta e branca do município.
Com isso, é possível entender o cenário atual da Umarizal acerca dos alagamentos em períodos de chuva. Apesar de apresentar inundações em alguns pontos do bairro, estes são consideravelmente menores em comparação a outros bairros, devido a fatores como possuir saneamento básico e um sistema de drenagem e coleta de lixo mais adequado em comparação aos bairros populares. Percebe-se também o direcionamento de políticas públicas para o bem estar civil a partir da modificação do perfil de seus moradores, a qual se transformou em uma população majoritariamente branca de classe média.
O bairro do Guamá, situado na zona sul da cidade de Belém, é banhado pelo Igarapé do Tucunduba e pelo rio Guamá. Sua história remonta a 1728, mas ganha destaque com a instalação, em 1815, do Hospício dos Lázaros do Tucunduba, o primeiro leprosário da Amazônia. Com o aumento populacional e a expansão urbana, tornou-se necessário uma ocupação mais extensa da área, especialmente por uma população carente vinda de outras regiões, apesar das condições físicas desfavoráveis do bairro. A demanda por melhorias para atender às necessidades crescentes resultou em transformações na área a partir da década de 60. Apesar disso, o Guamá manteve sua condição periférica, habitado principalmente pela população marginalizada da cidade.
A ocupação desordenada da várzea, tornou-se um fator potencializador das inundações. Sendo assim, Guamá destaca-se como um dos mais afetados por essas condições, especialmente devido às características físicas da região. Além disso, a falta de tratamento adequado do esgoto, a pavimentação das vias, a redução das áreas verdes e os fenômenos ambientais contribuem ainda mais na vulnerabilidade a alagamentos, impactando negativamente a qualidade de vida na região, especialmente às populações mais vulneráveis.
Os danos dos alagamentos e inundações, para além de físicos e materiais, são resultados de uma dinâmica desproporcional de acesso à saúde entre os bairros - o que implica na falta/diminuto acesso ao bem-estar social destas comunidades. Considerando os contextos sócio-históricos de ambos os bairros e a forma como se estabelecem na atualidade, a realidade é posta de tal forma que as pessoas que moram e utilizam os espaços do bairro Guamá são associadas às condições sociais e higiênico-sanitárias desfavoráveis ao bem-estar social hegemônico. Sobretudo, ainda hoje este espaço geográfico é abrigo predominantemente de grupos sociais vulneráveis, como pessoas pretas e pardas.
Nesse sentido, destaca-se o racismo ambiental presente na dinâmica de inundações e alagamentos, alargados com a modernização e transformação de Belém na “Paris da Amazônia”, bem como com o desenvolvimento histórico e econômico e a ocupação dos bairros Umarizal e Guamá. Devido ao seu profundo processo de urbanização, o bairro Umarizal é um dos bairros que menos sofre com os alagamentos e inundações, seja pelo acúmulo de água nas ruas, seja pelo transbordamento das águas dos canais de drenagem.
Enquanto isso, o bairro Guamá segue com os problemas antigos relacionados à falta/inadequação de tratamento de esgoto e canais de drenagem pelas ruas do bairro – o que dificulta a infiltração de água das chuvas no solo - ou de adequados tipos de drenagem pluviais, como é o caso dos canais dos rios como o Tucunduba. Ademais, outro destaque é a presença de dois rios: Rio Guamá e Tucunduba, o que contribui para casos de enchentes no bairro, junto a chuvas fortes e ao fenômeno da maré alta - dois tipos de atividades naturais que, ligado ao asfaltamento e construção abundante de casas e pontos comerciais, intensificam as crises de alagamentos e inundações no bairro.
Por fim, é possível trazer à discussão as convergências e divergências presentes nestes dois bairros da cidade de Belém. Uma convergência histórica entre ambos é a vertiginosa ocupação habitacional e instalação de pontos comerciais. As divergências, por outro lado, são bem mais numerosas se considerarmos a economia e, principalmente, o diferente investimento dado aos bairros do Umarizal e Guamá. Nesse cenário, a Umarizal é marcada pelo contexto étnico-racial de embranquecimento, de modo a receber maiores investimentos nos processos de escoamento de água e esgoto, valorizando a elitização do bairro. O Guamá, entretanto, ainda sofre na atualidade tanto com fatores de origem natural – enchentes dos Rio Tucunduba e Rio Guamá no contexto de maré alta – quanto com a precarização do saneamento básico e de estruturas de drenagem. Além disso, devido à cultura da higienização presente no embranquecimento da população brasileira, a população marginalizada é forçada a ocupar o bairro, mesmo sem qualquer preparo para a ocupação, sinalizando a precarização da vida dada a essas pessoas.