Apresentação
O presente estudo trata-se de um relato de experiência sobre as ações desenvolvidas no projeto de extensão universitária “Janela Aberta: Arte, Cultura e Geração de Renda em Saúde Mental”, vinculado ao departamento de Psicologia da Universidade Federal da Paraíba (PROBEX/UFPB). O projeto atua pelas vias de uma clínica do devir, implicada, pois, na diferença e transformação dos sujeitos. Para isso, aposta nas práticas inventivas no cuidado de pessoas em sofrimento psíquico e/ou que fazem uso de substâncias psicoativas.
Nosso intento está atravessado pela criação de novos territórios existenciais, utilizando das conexões relacionais que podem surgir a partir da arte, cultura e economia solidária. Ainda que a atenção à saúde mental tenha avançado, principalmente com os pressupostos da Lei da Reforma Psiquiátrica e da Rede de Atenção Psicossocial, lidamos constantemente com ameaças ao cuidado humanizado e a integração social e familiar dos sujeitos em sofrimento psíquico. Desse modo, buscamos construir com o “Janela Aberta” caminhos possíveis para romper com as estruturas rígidas de cuidado, as opressões e os estereótipos colocados sobre a loucura.
Atualmente, o projeto acompanha os processos de transformação de um grupo de usuárias artistas do CAPS III, chamado “Bem Me Quero Empoderada”. O coletivo surgiu a partir da realização de oficinas terapêuticas de pintura, pelas quais as artes produzidas se transformam em produtos que, através dos princípios da economia solidária, são revertidos em recursos financeiros às participantes. Neste cenário, partindo da composição de sujeitos que se produzem pela diferença, este relato tem como objetivo relatar os efeitos que emergiram de uma ação específica, construída junto a “Bem Me Quero Empoderada”, na formação de um ateliê de pintura, implicado na autonomia, expressão e geração de renda das usuárias.
Desenvolvimento
O projeto “Janela Aberta” tem suas ações implicadas na atenção psicossocial, com base na Educação Popular em Saúde e nos elementos teóricos da psicanálise, da esquizoanálise, bem como dos princípios da economia solidária. Suas ações integram a relação universidade-comunidade, por meio de práticas que alcançam o ambiente acadêmico, os equipamentos de saúde mental e a circulação na cidade. O ateliê de pintura foi possível a partir da composição da extensão com a “Bem Me Quero”, na elaboração e submissão do projeto “Ateliê de pintura e economia solidária: onde a loucura inventa a arte”, ao Edital 1ª Regional de Cultura, lançado pelo Governo da Paraíba, através da Secretaria de Estado da Cultura - SECULT, conforme a Lei Complementar nº 195/2022 (Lei Paulo Gustavo). Com a seleção, o coletivo recebeu incentivo financeiro para a criação do ateliê. Desta feita, o “Janela Aberta” tem apoiado as ações que ocorrem nesse espaço, também território de produção e criação. Os afetos e afecções vivenciados ao decorrer da nossa participação foram registrados em diários de campo, os quais serviram para a produção de dados desse relato.
Resultados
A fim de pactuar com a promoção de saúde de forma humanizada e comprometida socialmente, buscamos maneiras possíveis de ampliar a circulação do coletivo “Bem Me Quero” a partir do estabelecimento de um lugar para a produção de suas artes e produtos a serem comercializados, para além do que já se construía no CAPS III. Sabemos que a arte tem sido uma parte fundamental das atividades oferecidas nas oficinas terapêuticas desses equipamentos, no entanto, é crucial distinguir o produzir arte como uma simples cópia de algo já existente, e implicar-se numa criação que seja genuinamente própria, a partir do que compõe o sujeito e o atravessa.
O ateliê, portanto, surgiu conforme as usuárias se implicavam com a arte e nós nos implicávamos em contribuir com as práticas inventivas de cuidado. Era preciso que essas produções que se expressavam como modos de vida ocupassem novos territórios, lugares outros que pudessem convidar o olhar e o interesse de outras vias da cidade. A ideia de construção do projeto foi exitosa ao sair do papel, a pintura foi realizada livre e abstratamente, sem restrições ou diretrizes rígidas sobre como deveria ser feita ou interpretada. Estávamos compondo uma clínica que buscava encorajar a liberdade de mulheres para ser, criar e estar no mundo.
A base de tais vias foi agenciada pelo que acreditávamos como liberdade, desafiando os padrões estéticos impostos sobre o corpo, a loucura e a arte - acreditamos que seja justamente isso que a torne tão bela. Assim, quando o ateliê foi materializado em um espaço extra muros do CAPS, além de concretamente, mas na sua forma viva, a partir da movimentação das usuárias, se tornou território de encontro, implicado não somente no ato de expressão daquelas mulheres pela arte, mas da sua invenção a partir dela, desenvolvendo vínculos, afecções e formas diversas de conduzir a vida.
Essa expansão também foi fortalecida a partir da iniciativa da “Bem Me Quero” como empreendimento de economia solidária. As artes produzidas transformaram-se em ecobags e carteiras, o que fez o coletivo se fortalecer a partir da sua participação em feiras solidárias e eventos relacionados à saúde mental e ao artesanato. Nesses trajetos, percebemos afetos também sendo gerados, muito relacionados ao sentido de pertença e de reconhecimento.
O ateliê segue semanalmente, sendo acompanhado por duas psicólogas (precursoras da formação do coletivo), uma oficineira de pintura, nós (extensionistas) do “Janela Aberta” e, frequentemente, colaboradores externos, dentre esses, os residentes em saúde mental da UFPB. O ambiente e os materiais são organizados previamente à chegada das artistas, como a disposição das mesas, montagem das paletas, telas, além da compra e organização de lanches para serem compartilhados no fim. Nas produções das artes em si, que podem ocorrer de forma individual ou coletiva, há favorecimento da circulação da palavra e as possibilidades de criação de vínculos entre as participantes.
Lançamos luz, portanto, nesse projeto, à efetividade que a produção de uma clínica não universal e não unilateral (clínica do devir) pode agenciar como produção de saúde. Uma das integrantes nos disse uma vez que não via a hora de voltar ao ateliê, outra conversava sobre como seus sentimentos se refletiam na tela. Nesses arranjos, conseguíamos visualizar muito do que se agenciava pelos efeitos das invenções possíveis que o território do ateliê possibilitava, tanto para desterritorializar, como reterritorializar movimentos que por tempos foram instituídos sobre os corpos das usuárias.
Conclusão
É notável como a arte, a geração de renda e o cuidado em liberdade se entrelaçam de forma significativa com a saúde mental. Os frutos do trabalho da “Bem Me Quero Empoderada” vão para além da conquista do ateliê, refletindo a possibilidade de ocupar mais espaços na cidade, no próprio território e da ampliação dele. Além disso, o “Janela Aberta”, no apoio que oferece ao coletivo, promove diálogos no âmbito da universidade e contribui para o desenvolvimento de diversas linhas de cuidado contra-hegemônicas, pelas quais unimos forças para efetivar o cuidado em atenção psicossocial. Compreendendo que a produção artística, a economia solidária e a criação do ateliê são especialmente importantes para a saúde mental das participantes do coletivo, a “Bem Me Quero” proporciona um ambiente de expressão criativa, autonomia e empoderamento. Assim, a criação do ateliê também surge como potência contra as antigas e novas formas de opressão e violências sobre as pessoas em sofrimento psíquico, as quais dão roupagem aos modelos manicomiais de cuidado.